quinta-feira, 30 de setembro de 2010

27 Pescando no gargalo (dois)

Chegou o famigerado dia. Depois de muito marcar e desmarcar, adiar em cima da hora, simular atropelamento, picada de cascavel, botulismo galopante e tantas e tantas mumunhas procrastinatórias, não dava mais. Minha moral, perante a cidadania paudocense, estava periclitante. Minhas desculpas não colavam mais. Meus amigos já não aguentavam preparar tudo: barco, tralhas, iscas, gelo, oxigênio destilado e, na hora da saída, eu não aparecer. Invariavelmente, desistiam da pescaria, iam para um bar, mandavam fritar as iscas e secavam a provisão de cachaça e assemelhados da viagem frustrada. Enquanto enchiam a cara, entoavam hinos de louvor em minha homenagem, nos quais eu era tratado por “pimpolho de meretriz”, “enviado às fezes” e “meu glúteo era - segundo eles - atacado por enormes pênis enlouquecidos” e terminavam por se arrastarem até o posto de saúde (onde sabiam que eu, nessas ocasiões, me refugiava), para me insultarem pessoalmente. Mas, não tendo mais como fugir, prestes a ser expulso de Pau Doce, capitulei. Não sem pagar um alto preço psico-somático: insônia, febres terçã e quartã, taquicardia, visões fantasmagóricas, náuseas múltiplas, pesadelos nos quais eu era devorado por peixes enormes, após ser servido a eles espetado num anzol colossal. No dia marcado, no pornográfico horário das 6 da manhã, fui levado de maca até o barco. Os mais chegados, temendo outra fuga, ou tentativa de suicídio, ficaram do meu lado, sem arredar pé, durante as últimas 48 horas. Como eu tivesse amanhecido cor de gema de ovo e tartamudeante, tendo recusado, pela primeira vez na vida, o trago do despertar, fundamental para mim, (já que minha filosofia de vida me impõe a obrigatoriedade de jamais comer nada em jejum), como, enfim, suspeitaram que era ou morte iminente ou joãosembracisse calhorda, e como, em ambos os casos, não faria a mínima diferença um ou outro – se fosse óbito, me jogariam no mar, se fosse engodo, me levariam na marra – me amarraram na maca e me levaram. Assim, foi meu triunfal embarque. Depositado no pequeno convés, com o barco em movimento, comecei a ressuscitar. O vento fresco e o cheiro de mar, penetrando narinas e boca adentro, além de me despertar, me predispuseram para o primeiro gole. Arco-íris, maravilha-maravilhice, aurora boreal, cristais em brasa, orgasmos visuais, sensacionalissimamentedade, embriões niquelados, cogumelos da paz, viva a vida viva, voar de volta à vulva ventríloqua, insenso estereofônico, grig-ar, bandolo, uga-uga, ai!ui!ei!oi! Trrrrrrrruuuuuuummmm... Ah, o primeiro gole. Es-pe-ta-cu-lar! Não há nada melhor que ele, ao mesmo tempo. Só é superado pelo segundo, que só perde pro terceiro, e pro quarto, quinto. O milésimo então! Meus companheiros ocupados e entretidos com a preparação do próximo e humano morticício, mal conseguiam aproximar o gargalo da minha boca desesperada. Para impedir que o balanço do mar me provocasse enjôo e para evitar presenciar a mortandade que, na certa, se avizinhava, decidi, mais uma vez, que o único caminho era o coma alcoólico, que não seria fácil atingir, dado meu estado de excitação e estresse, derramando toneladas de adrenalina em minha indefesa corrente sanguínea. Mas, mesmo assim, fiz um esforço e emborquei, praticamente, toda a adega marítima reservada para os doze apóstolos. Éramos doze no barco. O estoque era, segundo me contaram mais tarde (muito mais tarde), composto por 10 caixas de uísque, 8 de rum carta oro, 3 de carta blanca, 19 de cachaça da pura, 8 de gim, 7 de tequila, 2 de saquê, 18 de bagaceira, 13 de conhaque, 25 de vermute rosso, 5 de bianco, 10 de vodca, 6 de campari, 2 de arak e, por via das dúvidas, 5 de álcool puro, 98 graus, para misturar com limão, se a coisa apertasse. Quando as primeiras indefesas vítimas começaram a reluzir contra o céu azul, eu já havia esgotado 80% das 1692 garrafas, uma dúzia por caixa. Quando as areias de Pau Doce podiam ser, novamente, vistas, findou o estoque e, agora juntos, os doze apóstolos, começamos a tomar o que restava do combustível do barco, já que mesmo sem óleo diesel, ele chegaria no embalo. Atracamos. Deixando para trás os assassinados esquecidos no barco, voamos para o boteco mais próximo, para não perder o primeiro gole noturno. Os doze. Correndo. O último que chegar é mulher do padre!

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