sábado, 25 de setembro de 2010

26 Despescagem (um)

Todo caiçara que se preze, (ou mesmo todo animal urbano, que viva, porém, numa praia, como eu), tem que fazer, ao menos uma vez na vida, uma pescaria. Como sou avesso a qualquer tipo de execução, até mesmo de seres humanos, sempre nutri pela pesca um asco fundamental. A caça, que para mim é uma pesca piorada, é uma das maiores provas de que o homem é o menor dos seres. O mais abjeto. Aliás, o mais, não. O único. Eu a aceitaria somente se fosse uma luta de iguais. O leão e o homem. O tigre e a pantera. O homem e o urso. De mãos limpas. Sem qualquer arma, a não ser as providenciadas pela natureza. O covarde correndo atrás da raposa, ou emboscando, com flechas, facas, armas de fogo, armadilhas mil, é de uma vileza brutal. Os efeminados toureiros, por exemplo, com suas tão pouco másculas fantasias, para fazerem um simulacro mentiroso de desafio e coragem, com suas capas traiçoeiras, que escondem a arma mortal, necessitam que, antes de se arriscarem, um bando de banderilheiros agressores sangrem humanamente o touro, para abatê-lo e enfraquecê-lo, quase no limite do fatal. A pesca tem sobre essas atrocidades, apenas uma insignificante diferença que, de forma alguma, a redime: o matador não vê a sua vítima. A não ser na submarina, que, não sem razão, mais do que pesca, chama-se caça. As outras, de rede ou anzol, são feitas a vôo cego. Mas, ambas horríveis. A primeira, invisivelmente, cerca o peixe e o aprisiona. Não dá a ele a menor chance. Nenhuma. Nada. É, portanto, muito humana. E a outra, é o engodo elevado ao infinito. Uma apetitosa comida, às vezes viva, que esconde no seu âmago um feroz gancho mortal. Humaníssima também. Porém, depois que me fiz paudocense, notei, após os dois primeiros anos de férias, naqueles 24 meses iniciais, que meus amigos não eram totalmente meus amigos. Havia algo, um “não-sei-quê” que os mantinha arredios e “com o pé atrás”. No início, não havia me dado conta. Quando comecei a perceber que alguma coisa estranha estava ocorrendo, fui tentando alternativas. Parti de uma premissa indiscutível: não confiavam em mim. Mas, por quê? Tudo, a meu ver, ia bem. Adaptara-me perfeitamente à vida de Pau Doce, à sua cultura fundamental de endeusamento do ócio, da demonização de qualquer atividade que pudesse ser confundida com, ou interpretada como trabalho, da adoração da noite e do desprezo pelo dia, da vocação etílica, da incorporação do jogo como função vital, da absorção da malemolente malandragem como estilo de ser, da vocação etílica, do exercício sexual, fonte de vida, do banimento de todos os preconceitos – exceções feitas a posturas opostas a estes mandamentos -, da vocação etílica, do culto à música popular madrugadeira, da elevação dos botequins à condição de catedrais e da vocação etílica. Por que, então, ser tratado como um forasteiro, ou quase? Achei, primeiro, que era por minha marca urbano-paulistana. Porém, esta possibilidade caiu por terra ao constatar, entre os locais, a existência de vários oriundos da capital bandeirante. Seria por minha origem, já que não é segredo pra ninguém que eu sou filho de Teus? Desisti dessa também. Havia outros de estirpe industrial. E minha posição na pirâmide econômica? Não, porque todos sabem que minha amorosa mãe (amorosa em todos os sentidos) me provê do essencial e Teus, a pedido dela, mantém indefinidamente meu emprego. Tudo pouquinho, tudo pingadinho, mas tudo no dia certo. Assim, fui desfiando, uma a uma, dúzias de possíveis causas e, uma a uma, as fui descartando. Até que, numa excursão que fizemos, meu amigo Fenrique Hernando e eu, ao fundo de um garrafão de uca, abri a ele meu coração e confessei-lhe minha desorientação. Ele, num rasgo de coragem e confiança na sinceridade de meu desespero, me segredou a solução. A pesca. A pesca? Sim, a pesca. Mas como, a pesca? O fato fatal era que não confiavam em mim porque eu não pescava. Nem mesmo o inocente banho em minhoca eu dava. E o povo via, e o povo falava. E, em Pau Doce, quem não pesca não presta. Agradeci ao Fenrique e decidi: vou ter que pescar. Uma pescaria. Uma só. Pode ser uma só, mas com toda a pompa e circunstância, pra ninguém botar defeito e pra todo mundo conhecer o grande pescador. Meu Deus, como é que eu vou conseguir dormir depois? Veremos...

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