segunda-feira, 20 de setembro de 2010

25 Mais um dia a menos ou menos um dia a mais?

Pela primeira vez, amanheceu de noite em Pau Doce. Claro que para o paquidérmico leitor isso é impossível. (Impossível, aqui no paraíso, é calo na mão, trabalhar dois dias seguidos, manter o biscoito seco, desprezar a canjebrina e, principalmente, camuflar a geringuenga). Impossível e impensável. Que podem também ser impossável e impensível. Na verdade, Pau Doce combina mais com impemponsável e impompensível. Mas, o antediluviano leitor (pleonasmo), sempre preocupado com a objetividade obtusa dos fatos, estará, apressurado, perguntando-se sobre o tal amanhecer. Amanhecer pela manhã é de uma mesmice primária e apatetada, indigna de nossa nirvânica praia. Ou anoitecer de noite. O fato da noturna amanhecedura ocorreu num comuníssimo dia 37 de marceneiro (aquele mês paudocense que mistura março com janeiro). Havíamos todos (todos, aqui, quer dizer “todos” mesmo, sem exceção nenhuma, nenhumíssima, com exceção, é claro, dos menores de idade, já que a pedoalcolatria é proibida nestas paragens, e com exceção, também, dos muito maiores de idade, que a provectosenília é, aqui, enfermidade elevada ao nível de ciência) passados 3 dias, segundo os mais exagerados, ou 19, pelos cálculos dos mais comedidos, em “absoluta orgia etílica descompensada” (porque há, também, a “absoluta orgia etílica absoluta”, conhecida pelo nome técnico de “absoretuta”), quando a população foi, aos poucos, aos goles, saindo do coletivo sono pós-orgiástico, que, segundo pesquisa da Organização Mundial de Saúde, durou cerca de um mês e ficou conhecido como o “Apagão de Pau Doce” – período em que tudo parou, veículos não circularam, escolas não funcionaram, estabelecimentos não abriram nem fecharam, com as ruas e as calçadas atapetadas de ressonantes cidadãos, uns deitados sobre os outros, homens e mulheres, indiscriminadamente, sem qualquer relação necessária de amizade ou parentesco, num sono profundo, sonorizado por um fantasmagórico ronco geral, pontuado por apnéias, grunhidos e tosses secas (e algumas molhadas), transe durante o qual apenas as crianças, de todas as idades, estiveram isentas, sendo cuidadas pelo panteão de divindades paudocenses e seus diligentes mensageiros – quando, então, foram recobrando os sentidos, (a maioria louca para dar um tapa na celestial), deu-se o fenômeno miraculoso: caminhavam, afoitos como sempre, os horeiros dos relógios do número 18 para o 19 e os minuteiros, muito mais velozes, como soem ser, buscavam desesperadamente o 24, com o céu já multipontilhado de estrelas e uma obscena lua cheia exibindo-se peladona, peladona, quando, sem o menor aviso, mais abruptamente do que qualquer abruptamente já antes visto, ele, o sol, apareceu. Apareceu sem qualquer cerimônia, como alguém que, sem saber, entra num palco pensando que é um banheiro, pessoa errada na hora trocada no lugar equivocado, ele, justamente ele, tomou conta do pedaço e a noite, que mal começara (não que começara mal), transformou-se em dia, pior, transmutou-se o anoitecer, lascivo e maravilhoso, em repugnativa e nauseante manhã; e, como, proverbialmente, todo paudocense odeia, de alma e corpo, as horas matinais (reservadas ao sagrado labor de pulverização e reabsorção inconsciente dos átomos de etanol, multi-presentes na emoglobina de toda a cidadania, tarefa executada por São Morfeu, um dos mais cultuados entes da santografia de Pau Doce) os acordantes, muito mal despertos ainda, num acordo tácito e involuntário, puseram-se a vaiá-lo com todas as forças, que apesar de não serem muitas, produziam um apupo ensurdecedor, não muito diferente do ensurdecedor ronco que o precedera. O sol, tomado de horror pela recepção hostil à sua presença, numa atitude bem própria de todo sol, continuou brilhando acintosamente durante todas as horas da noite. Não restou outra saída do que mexer nos horeiros, minuteiros e segundeiros, acertando os relógios pela vontade do rei. A única dúvida que, até hoje, persiste é quanto ao dia do ocorrido: Pau Doce ganhou um dia ou perdeu uma noite? Vai saber...

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