sábado, 29 de janeiro de 2011

51 Inaugurando a aula inaugural

Ontem, tivemos a primeira aula da UniPau. Aula inaugural, como é chamada nos meios acadêmicos. Aqui, ao contrário das universidades do mundo inteiro, todas as aulas serão inaugurais. Ou, dito de outra forma, todos os cursos se resumirão à aula inaugural. O resto é dispensável, encheção de lingüiça, uma chatice insuportável, por isso, banido da nossa instituição. A aula inaugural não. Essa tem tudo de bom: é curtinha, mil badalações, só gente bonita, paparicagem global, pouco papo, mínimo blá-blá-blá, que, na verdade, acaba sendo apenas uma introduçãozinha para a segunda parte essencial, a que de fato interessa: o tradicional coquetel universitário, no qual só entram os convidados especiais. O estudante, por exemplo, esse ser repelente, repulsivo e nauseante, que contamina e conspurca a vida acadêmica, que só atrapalha e prejudica o ambiente (um pagante mal-necessário para as universidades), tem sua entrada totalmente vetada. A lei é muito branda e leniente com esse corpo estranho, já que deveria limitar sua participação na escola, unicamente, ao pagamento das mensalidades. Todo o resto lhe deveria ser proibido. Mas, vá lá, o ordenamento jurídico faculta a ele, por absurdo que seja, o direito de assistir às aulas, (mudo e calado), mas, dá ao professor o superdireito, mais sagrado ainda, de reprová-lo. Essa é a primeira e grande função do professor: reprovar o aluno. A reprovação é o mais importante recurso pedagógico (opinião comum aos grandes pedagogos, de Faulo Preire a Tanísio Eixeira, de Comenius ao Professor Pardal): aluno reprovado paga duas vezes. Ou muitas. No coquetel, por sorte, não havia essa subespécie de protozoário inferior. Nossa primeira aula inaugural, ou inauguraula (primeira, já que, como vimos, todas as demais serão também inauguraulas) é conhecida na tradição histórica da UniPau como Unipaula.Tradição histórica? Estará se perguntando o mentecapto leitor. Tradição histórica sim. O asinino ledor não deve estar lembrado, como é de se esperar, porém, na Itinerância 40, quando fechamos o negócio universitário com o Abutre Calhorda, foi dito claramente que compramos o projeto inteiro. Ainda lembro que usei a expressão “porteira fechada”, ou seja, compramos um pacote com tudo dentro, incluindo, nesse tudo, (que é tudo mesmo), uma história acadêmica de mais de 50 anos. Tudinho aprovado pelo MEC e registrado em cartório de Brasília (cartório em Brasília é mais cartório). Então, apesar de estarmos no primeiro minuto da nossa inauguração, temos já uma vida cinqüentenária: pessoas famosas, artistas, ministros e até ex-Presidentes da República estudaram na UniPau, tanto no passado recente, como no remoto. Nesta primeira unipaula, tivemos não apenas um conferencista, mas uma mesa redonda composta por três personalidades do mundo do conhecimento acelerado (há celerado?) de renome internacional: em primeiro, o atleta-fundador da Ambev, que discorreu sobre o tema: “a cervejolatria como único caminho de salvação”; em segundo lugar, o líder espiritual da ONG, recentemente indicada para o Prêmio Nobel da Paz, “Dorminhocos Sem Fronteiras” que, numa demonstração da pacífica proposta de sua entidade, dormiu o tempo todo e, por último, exibiu-se o Secretário-Geral da CBCA - Companhia Brasileira de Corrupção Ativa - que apresentou work-shop sobre a recém-iniciada construção do Propinoduto Brasília-São Paulo-Rio de Janeiro-Belo Horizonte-Brasília, obra celebradíssima na mídia, mas que está sendo objeto de veementes protestos e pesadíssimas denúncias, em especial pelas autoridades de capitais como Curitiba, Porto Alegre, Salvador e Recife, por terem ficado de fora do traçado original da mamogandaia. Depois de aplaudidíssimos os dois primeiros, sobrou uma estrondosa vaia para o mamólatra, culminando com sua expulsão do evento e a sustação dos cheques em branco, que seus assessores haviam coletado durante o ato acadêmico. O tratamento hostil dispensado ao representante oficialista deve-se ao fato de que em Pau Doce aceitamos, no máximo, uma corrupçãozinha das mais passivas possíveis (uma multinha de trânsito perdoada por aqui, um impostozinho de renda não cobrado por lá, não mais do que isso...). Uma vez escorraçado o cachaço, a festa continuou como se nada tivesse acontecido. Da primeira intervenção, ficou marcada indelevelmente em nossas mentes, a “teoria da fermentação”: o processo químico da fermentação da cevada, uma vez desencadeado quando da ingestão da cerveja, penetra em cada célula do corpo (todas elas desesperadas para tirar o pó da garganta) e provoca a expansão comprimida da substância conhecida pelo nome técnico de H3P9, “agatrespenona”, responsável pela higienização do núcleo celular, através da incineração dos resíduos gerados pelo processo de biocontinuidade molecular aguda (popularmente conhecida como “a vida”). Tal limpeza pode ser obtida, também, ainda que de forma relativamente precária, por compostos medicamentosos alopáticos, porém, com alta possibilidade de sérios efeitos colaterais (cuja principal sintomatologia é a destonalização e desafinação vocal e, em sua fase mórbida, a reversão irreversível da opção sexual heterodoxa, também conhecida como “sexo-sócio-rearmarização”). A ingestão de cerveja, porém, através da ação da agatrespenona, aumenta a longevidade celular global, multiplicando-a indefinidamente. Essa quase pré-imortalidade leva o indivíduo, (qualquer que seja a sua opção religiosa, ou mesmo não possuindo uma, ou ainda, sendo um ateu ativo), a um estado de exaltação espiritual, definido pela Organização Mundial das Igrejas e Quejandos como “estágio de salvação endêmica”. Terminada esta bela conferência (bela, sobretudo, porque desde os prolegômenos à conclusão final não levou mais de dez minutos), o segundo expositor utilizando-se, muito sabiamente, da técnica da vivência real, tendo já dormido o tempo todo da fala de seu antecessor (tempo muito curto, como vimos), continuou roncando quando lhe foi facultada a palavra. Aplaudidíssimo, depois de 15 minutos de demonstração prática de sonoatividade induzida, acordou a tempo de tomar sua champanhota geladinha. A primeira unipaula foi sucesso total, menos pelos dois primeiros heróis acima resenhados, e muito mais pela despaudocização do enviado de Brasília, que segundo notícias da Marinha do Brasil, neste momento, continua nadando, agora já a poucas milhas do litoral africano. Saravá!

sábado, 22 de janeiro de 2011

50 De Um a Vinte: a galopante carreira (?) de um santo deslumbrante

Estamos novamente nos aproximando da Festa de São Vinte de Pau Doce, nosso padroeiro. Segundo alguns hagiólogos, São Vinte nem sempre foi São Vinte. Parece ter começado sua santa história como São Um. “Um”, ao que consta, não era seu nome de batismo (especula-se que se chamava Procrastineu), mas um apodo motivado por sua principal característica: era um grande resmungador. Passava o tempo todo resmungando. Era um tal de “uuumm” pra lá, “uuumm” pra cá, e a coisa pegou. Ainda em vida, passou a ser conhecido por “Um”. Unzinho, quando criança, jovem Um, quando jovem, até, mais tarde, tornar-se Dom Um, arcebispo da catedral de Santa Inércia do Descanso, na famosa cidade-estado européia Cochilópolis, e, após sua morte passaram a se referir a ele com “Era Um” (ou “Um já Era”). Uma vez santificado, o apelido foi sabiamente mantido pelo Vaticano: São Um (já pensaram que horror não seria: São Procrastineu!). Os ditos biógrafos relatam (já, agora, eram quase triógrafos) que de Um ao Vinte, não foram gastos mais do que miseráveis 200 anos. A cada dez anos, turbinado por estrondosos e mirabolantes milagres, São Um foi galgando novos postos até atingir as atuais duas dezenas. E por que teria sido, tão semovente santo, escolhido como padroeiro de Pau Doce? Estará se perguntando o imêmore e jumentil leitor. Acontece que, segundo seus biógrafos mais recentes (também chamados de vintógrafos ou doudezenógrafos; biógrafos era quando ele era apenas São Dois – não São Bi, que poderia dar margem a outras interpretações), ele dedicou sua santíssima vida a combater tenazmente, e sem quartel, o trabalho. Toda e qualquer modalidade laboral. Considerava a faina produtiva como coisa do demônio, infernal, portanto, a perdição final e fatal. O trabalho, para São Vinte, era a mais despudorada e obscena atitude humana. Pior que a guerra (que é terrível), pior que a corrupção (abjeta, sob todos os aspectos), pior até que, (supremo deboche), o futebol (hediondez à época ainda não inventada pelos ingleses, mas já intuída pelo estonteante santo). O trabalho, e apenas ele, é o responsável pela tragédia humana: pela miserabilidade da maioria e pela riqueza de uns poucos, pela exclusão social, pela mortalidade infantil, pelas doenças incuráveis, pela alta criminalidade, pela baixa estatura dos anões, pelo fumo suicida, pela proliferação das mulheres feias, pela parca utilização da mesóclise, pelos nascimentos prematuros, pela baixa qualidade das rações felinas, pela hipocondria dos avestruzes, pela acumulação de gordura abdominal nos homens casados, pelos fins-de-semana motorizados, pela sofrida existência dos dentistas e dos lavadores de pratos, pela desinformação endêmica absoluta, pela inexistência de uma Associação de Defesa dos Veados e dos Leopardos, pela parcimonialidade dos vendedores de sapatos, pela proliferação das doenças venéreas e das lojas do Mc’Donalds, pelo aumento gradativo das missas por correspondência e por tantos e tantos outros males subpiteliais, dores corníferas e caspas oleaginosas. Sua famosa frase: “o trabalho dá muito trabalho” já diz tudo da inteligência, ladinice e santidade de nosso protonotário padroeiro. (Esqueci de dizer: São Vinte foi Protonotário Apostólico) Com este maravilhoso Curriculum Vitae, somado à sua proverbial capacidade de absorção etílica (segundo fidedignos relatos de seus coroinhas profissionais, São Vinte tomava três garrafões de vinho a cada missa rezada. E, como se tratava de um homem de espírito elevado, com uma disposição caritativa de dezoito quilates, só ele queria oficiar as missas na paróquia da “Misericórdia Desbundante” com sede na catedral acima citada. Não tinha pra mais ninguém! Vinte missas por dia. (Ele fazia as contas mentalmente: três garrafões de cinco litros por missa, com vinte missas por dia) Mamava trezentos litros de celestial fermentado de uva, diariamente. Como nas Bodas de Caná, transformava água em vinho. Bom, por tudo isso, São Vinte não é apenas e tão-somente São Vinte, mas é São Vinte de Pau Doce. E sua festa, como disse, está se aproximando. Maravilha! Não vejo a hora! Este ano, a proposta é arrebentar a boca do balão. Vai ter de tudo e mais um pouco. É possível que venhamos a ter mais mais um pouco do que de tudo, já que o de tudo o usamos mais como força de expressão do que como realidade realmente real, pois de tudo não podemos ter, uma vez que abominamos trabalho, suor e futebol. Com exceção desta tríade peçonhenta, temos tudo o mais, a não ser a possibilidade de existência de um ou outro parangolé convenientemente aqui olvidado. Houve dado que não citei sobre a comemoração sanvinteana vindoura, mas que, corrigindo a falha, agora citarei: quermesses! Não pode haver festa de São Vinte sem quermesses. Várias: quermesse virtual (apenas no computador a lenha do edil Jacinto Pinto Aquino Rego), quermesse onírica (estabelecida no inconsciente individual e coletivo da plutocracia freudwaldysneiriana peedense), quermesse contábil (a ser lançada com verbas consumidas nas costas do erário público e, evidentemente, como é de lei, superestimadas) e a quermesse propriamente dita, com barracas, sorteios, mil comidinhas, prendas variadas, quentão e vinho quente (esta convenientemente transferida para a Paróquia de São Sebastião, já que em Pau Doce não há quem se disponha a trabalhar (arghhh!) na dita cuja). Mas, além dessas maravilhosas quermesses, haverá muito mais: demonstração de descanso coletivo para energização vital, ato público de repúdio à violência em suas formas mais comuns e insidiosas (como levantar peso ou carregar pacotes, por exemplo), cerimônia ecumênico-sincrética macumbristã, exposição, na UniPau, das mais recentes conquistas da pesquisa estático-ergonométrica: “Novas técnicas de dormir em pé”, “A hipertrofia do sono”, “Comprovação científico-laboratorial do esforço físico como gênese da depressão aguda e terminal”, e o lançamento, na Academia Paudocense de Ciência, Literatura e Alfabetização, dos livros: “Atividade muscular: a ação inútil”, do Dr. Oncimar Curtinho, “Sono leve, o outro nome da falta de vergonha”, do Dr. Oncimar Curtinho Filho, “Andar mais que 100 metros diários, sinal de hiperatividade mórbida”, do Dr. Oncimar Curtinho Neto e o best-seler canônico “Durma sempre e vença na vida”, uma biografia não autorizada e nem assinada de São Vinte. São Vinte de Pau Doce, rogai por nós!

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

49 Pornoidéias

Em Pau Doce, um cidadão pode reclamar de tudo, menos de ausência de novas idéias. Como não fazer nada é a lei, sobram tempo e energia para elas. Nossa produção de propostas, usitadas e inusitadas, é, sem a mínima sombra de dúvida, a maior do globo por metro quadrado ou por neurônio cúbico. Todas as noites, na miríade de bares, botecos e bate-coxas que nos caracteriza, em cada um deles, com dois ou mais dulcipaulitanos reunidos em assembléia (bastam dois) as idéias vertem copiosamente, enxameiam, pululam. E durante o dia? Estará se perguntando o jumentício leitor. O dia, meu desestimulante amigo, como já me esfalfei de repetir em dezenas destas transcendentais Itinerâncias, o dia em Pau Doce foi feito única e exclusivamente para o descanso e à inação, acunados pelo sono. Durante o dia, enquanto o resto do mundo trabalha, Pau Doce dorme. Durante a noite, enquanto o mundo dorme, Pau Doce se diverte. Bom, após esta desagradável pausa, este interregno dispensável, provocado pela nulidade intelectiva do desagradável personagem acima citado, voltemos às idéias. Como a cada noite uma avalanche de idéias se abate sobre nós, e como a cada amanhecer somos condenados ao sono reparador e amnésico, a maioria das concebidas idéias são destinadas a uma curtíssima vida espermatozoidal de horas ou minutos. Umas poucas, pertinazes e perturbadoras, ganham vida própria e subsistem para além da noite natalícia. Recentemente, uma destas obstinadas tomou corpo e passou a ser discutida em subseqüentes noites. Essa idéia, segundo consta (ou conforme corre), nasceu de uma aposta. Estava um grupo de gestados por meretrizes, filomamando (filomamar é o ato de refletir, enquanto se sorve algum néctar divino) no respeitável estabelecimento – de nome um bocadinho longo e inusual para um bar, mas, acima de tudo, edificante e poético: “Não põe a mãe no meio que eu ponho no meio da mãe” (excelente verso alexandrino, na forma, e uma verdadeira lição de vida, no conteúdo) – quando surgiu, como que do nada, a proposta de uma aposta (como diz o famoso ditado “Na proposta duma aposta só não entra quem desgosta ou que a vida é uma mostra”. Famoso e sem nenhum sentido): ganharia quem propusesse o maior “chá-de-bico” pra Pau Doce (“chá-de-bico” é o popular clister ou lavagem intestinal). Choveram as propostas mais pornográficas que se possa imaginar: comemoração do dia do trabalho, obrigação de, uma vez por ano, despertar antes das três da tarde, criação do dia anual da fidelidade, tolerância ao esporte, descriminalização do futebol. Só absurdos, só proposições completamente inaceitáveis, sequer imagináveis em Pau Doce. Mas, a pior de todas, a mais abjeta, infâmia das infâmias e que, segundo as regras do jogo, foi a vencedora – que por imoral e repugnante aos princípios de cidadania, não deveria nem mesmo ser aqui citada, mas que mencionarei apenas para provar até aonde pode chegar a desfaçatez humana e para demonstrar minha incomensurável índole democrática – foi a instituição do “dia sem álcool” em Pau Doce (ou Sem Álcool no Pau). Se a proposta fosse minimamente viável ou pseudo-palidamente exequível, como, por exemplo, “um dia sem oxigênio”, ainda vá. Mas, sem álcool? É a inimagibilidade elevada à máxima potência atômica e metafísica. A primeira reação, quando Pau Doce acordou para viver a noite seguinte, foi a despirocação total, acrescida da cabal desvaginalização. Gritos lancinantes, ululos ululantes, ameaças de suicídio em massa, massas de suicídio em ameaça, conversões escandalosas a religiões inexistentes, flatulências orais involuntárias, voluntárias flatulências horais. Uma vez passado esse primeiro momento de viadice aguda compreensível, a borbulhante população, por via das dúvidas enchendo a cara (já que o seguro morreu de velho), tentava encontrar possíveis atenuâncias para a vomitativa proposta: “Dia sem álcool”:
1- referir-se-ia a aposta não ao dia de 24 horas, mas à metade deste, assim chamada –dia- já que durante ela ninguém está acordado, ainda que não sejam poucos os que dormem com álcool injetado na veia, substituindo o soro, os quais seriam, neste caso, muito prejudicados;
2- proibição de abastecimento de carros a álcool nos postos paudocenses; um dia por ano,
3- ao invés de “dia sem álcool” seria “dia cem álcool”: multiplicação do consumo individual diário por cem vezes;
4- “de acém-alcool”: churrasquinho de acém regado a canjebrina, foram algumas das excêntricas interpretações, constituindo, umas mais, outras mais ainda, naquilo que a sabedoria popular define como “dar uma de João-sem-braço”.
Mesmo com o sadio corrimento das interpretações alternativas pelos bares de Pau Doce, o pânico foi enorme, geral e irrestrito, ou quase, superlotando, em consequência, o Posto de Saúde local, mais os Postos das praias vizinhas: Maresias, Pauba, Toque-Toques, Santiago, Praia Preta, Praia do Cu-de-Ferro, Boiçuca e, até, o Hospital Regional de São Sebastião. O diagnóstico de todas as internações foi um só, único e solitário: “Sindrome de Abstinência Antecipada”, ou, como quer a Orgasmização Mundial de Saúde: “Pânico Apriorístico Cautelar”, com o fator desencadeante rubricado como: “Antecipação Prévia de Estado de Carência Absoluta”. Dada a repercussão, até internacional, da calamidade pública, a pedido, (solicitadamente imposto), das autoridades estaduais e federais, as três polícias intervieram com vigor (e algo mais) com o fim de identificar os criminosos e colocar uma pedra (enorme) sobre o doloroso drama. Pelo que se pode saber, passados 28 dias do sucesso, o presumível autor da proposta ainda não parou de correr, dando conta algumas versões de que já teria atingido o Alto-Xingu, enquanto outras, mais insistentes, afirmam que estaria levantando poeira na África Sub-sahariana. Deus o tenha!

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

48 A nihilidade do nada e a tihilidade do tudo

Semana passada estávamos realizando uma pesquisa científica sobre o tempo médio de volatilização do álcool quando incorporado à corrente sanguínea a partir da sua ingestão através de vários condutores distintos: do goró-gogó (pinga pura) ao leite-de-onça (cachaça, leite-de-coco e leite condensado), passando por vários outros intermediários entre a pureza do primeiro e a misturança do segundo. O laboratório onde ocorria tão transcendental investigação era o Bar Bitúrico e já estávamos lá há quatro dias sem sair de cima, quando o Eutanásia, sócio majoritário do laboratório (além dele, tem mais dez pichulés – todos atletas praticantes), introduziu, com a suavidade de um supositório de glicerina, um novo tema para a discussão: “o que é o nada?”. Rapidamente, o Cafarnaum pediu um copo cheio até a boca para ele, pensando tratar-se de bebida nova. O Micoim, com uma Coramina na veia, estava terminando seu quinto retorno (“retorno” é o nome técnico da volta do coma alcoólico), não sabia o que estava acontecendo. “Lona”, gritou o Pé-de-Alface, que jogava porrinha com o Canguru. De cara, achei que o Pé tinha acertado a resposta quando sua mão aberta e vazia me disse que ele não ouvira a pergunta. “Porra, Caridade (“Caridade” é o apelido do Eutanásia), que pergunta mais pentelha, às quatro e meia da manhã?”, protestou o Vespinha. “Cala a boca, meu, que esta espelunca é de respeito. Só discutimos coisa séria, cacete!” Bom, o fato é que quando os pornográficos raios solares vieram encher nossos sacos, ainda estávamos analisando o nada. O nada é o contrário do tudo e do todo. A ausência de alguma coisa. O não-concreto. O vazio. Mas, a essa primeira resposta, interpôs-se a questão: “e uma idéia, é nada?” Se a idéia existe, existindo não é nada. Assim, não apenas o concreto nega o nada, mas também o incorpóreo o anula. Ao negar e anular o nada, estrutura-se o não-nada. Um corpo (uma garrafa de rum, por exemplo), tanto quanto uma idéia (vg, a etilidade edênica) configuram o não-nada. E o não-nada é a negação do nada, que, por sua vez, o anula. Pensando bem, o próprio nada nega o nada, já que o nada é a idéia de nada e, como idéia, existe e, existindo como nada, mesmo em idéia, nega a si próprio, que nada é. Quando, por exemplo, alguém diz: “não quero nada” é porque quer alguma coisa, já que duas negações equivalem a uma afirmação, como asseverava o bom e velho Antígenes, o Moço. Mas, mesmo que dissesse: “quero nada” é porque esse alguém não-nada quer. Mesmo que o não-nada não seja coisa alguma, (ou seja coisa alguma?). Se existe a idéia de não-existência (e é inegável que a não-existência, como idéia, existe) a não-existência é uma sonora impossibilidade. Coisa alguma, não-existência, nada são subterfúgios para o ser humano agarrar-se à ilusão negadora de que o ser é tudo em todo tempo e em toda parte. Essa idéia de total-totalidade é absurdamente insuportável. Podemos tolerar tudo, até a mais hedionda das possibilidades, mas não a onipresença do tudo. O que nos salva, nos alivia, nos conforta da cruel ditadura do tudo é o sonho do nada. Por essa razão, as religiões criaram o céu, o paraíso, em oposição à realidade do mundo. Mas, o paraíso não sendo concreto, é uma idéia e, sendo idéia, é um não-nada, existe. Como existe o círculo quadrado, o dia de 48 horas e o movimento estático. “E o sol noturno” emendou o Capistrano de Abril, que babava um fiozinho de licor. Após essa terrível constatação, interrompemos nossa filosófica discussão sobre o nada. Raiava a quinta manhã e a nossa
pesquisa tinha que prosseguir. “Muito obrigado!” Disse o Euta. “De nada!” Gritamos todos antes de desmaiarmos.

sábado, 8 de janeiro de 2011

47 Futebol: a depravação maior do humano ser

Posso afirmar, posso afirmar com toda convicção e tranqüilidade, de fato, não só eu posso afirmar, mas podemos afirmar todos, com certeza, podemos afirmar, de pés juntos, que em Pau Doce nada é proibido. Ora, se nada é proibido, tudo é permitido. Mas, é verdade que nada, absolutamente nada, é proibido em Pau Doce? Estará se perguntando o leitor, em geral, um ser inescapavelmente nesciente. Exatamente isso que você entendeu (apesar de que “entender” seja uma operação muito sofisticada e quase inalcançável para a maioria), em Pau Doce não há a menor possibilidade da existência de qualquer proibição. Sequer é possível proibir a própria proibição. E tudo é permitido, mesmo a proibição. Sendo permitida a proibição (já que tudo é permitido) e a própria proibição não podendo ser proibida (pois nada pode ser proibido), acabamos por permitir a proibição. Conclusão: em Pau Doce não sabemos mais o que é permitido e o que é proibido, nem ao menos vislumbramos o sentido de permitir e proibir, dois verbos que, para nós, são impossíveis de distinguir. Por tudo isso, a Academia de Filologia e Lingüística Paudocense resolveu, sabiamente, como se espera de qualquer Academia de Filologia e Lingüística, unificar os dois referidos verbos que, aqui, nada têm de contraditórios ou de antonímicos. Dadas as acerbas e acaloradas discussões e divergências, a Academia (seus dois membros) decidiu pela criação de duas novas formas verbais sinônimas: Proitir e Permibir (formas, aliás, que depois de criadas, regulamentadas e sacramentadas pelos acadêmicos jamais foram utilizadas, numa deslavada atitude de ingratidão popular). E como seria possivel distinguir situações concretas em que uma ação, sendo proitida (ou permibida), poderia ou não ser realizada? Estará, inutilmente masturpensando-se o microbiano leitor. A resposta a esta pergunta é que esta pergunta não tem resposta. Depende da situação concreta, do dia, da meteorologia, da fase da lua, dos personagens envolvidos se personagens houver, da contagem de glóbulos vermelhos no sangue e o catano. Por exemplo: algo que é totalmente permibido (ou proitido) em Pau Doce é o futebol. Tudo, tudo, tudo, menos futebol. Prostituição sim, futebol não. Corrupção, concupiscência, fúria uterina incontrolável, cleptomania genética ou adquirida, ceborréia, pé chato, fecalomas artísticos, acreditar em Papai-Noel e tantas e tantas outras virtudes malignas são toleradas e, algumas, até francamente incentivadas, menos futebol. Mas, como? Estará vociferando o oligofrênico leitor. Se na Itinerância nº 9 é citado o time de futebol de Pau Doce, inclusive com toda a escalação, com direito a preparador físico e diretor técnico? Calma, calminha! O tal time existe apenas formalmente, para efeito da política externa de Pau Doce, mas, na verdade, nunca existiu, jamais jogou, em tempo algum foi sequer imaginado como uma possibilidade real (a mentirinha homeopática é uma das nossas principais virtudes). Nem mesmo as crianças – esses curiosos seres quase-humanos – brincam com bola: não há campinhos, nem quadras, nem nada que lembre, mesmo remotamente, essa asquerosidade suprema. Brincam de roleta, carteado, jogo-do-bicho, garrafão, humana-mula, bozó, gulufim, pegador, de casinha, de médico genicologista, mas com bola, jamais. Nada há de mais vergonhoso na vida humana do que o esporte. Todos e qualquer um. Competição, campeão, primeiro lugar, medalha de ouro, vencer, vencer, vencer, disputas mil, tudo isso seria de um ridículo atroz, se não fosse catastrófico e horrendo (o que é uma guerra, se não um campeonato, um jogo, uma disputa?). Ao esporte interessa quem nada mais rápido, quem chega primeiro, quem salta mais alto, quem tira mais sangue, quem cospe mais longe, quem nocauteia o opositor, quem supera os limites humanos. Não há medalhas de ouro para o último, para o quarto lugar, para quem, humanamente, não consegue chegar. Para estes, o opróbrio, a vaia, a humilhação, na melhor das hipóteses, o esquecimento. Mas, dos esportes o pior, o mais patético e incompreensível é o futebol (até as lutas têm a vantagem de ser mais abertas e descaradas). Vinte dois marmanjos (podem ser marmanjas também) correndo atrás de uma esfera saltitante, chocando-se constantemente, às vezes, de forma violenta, tentando enfiá-la com o auxílio dos pés (ou da cabeça) num retângulo de alguns metros quadrados. A quadrilha, (os onze que se vestem com roupa igual), ou time que conseguir enfiar mais vezes a esfera de couro no retângulo dos inimigos, vence. O outro grupo, o mais encaçapado, perde. Vejam que coisa importante, que transcendental! É tão importante e tão transcendental que a assistência grita, vocifera, ulula e, muitas vezes, insulta, ofende, ameaça, agride e mata. Tudo porque outros preferem outros onze que não os seus onze preferidos. Os ingleses aterrorizaram os mares, incentivaram e administraram a escravidão negra, piratearam os oceanos, pilharam os cinco continentes – da China à Argentina, da Índia ao Sudão, da Austrália ao Canadá – criaram a mais-valia, o supremo roubo do capitalismo, carnavalizaram o massacre das pobres raposas e, para coroar, inventaram o futebol. Os seus “holligans”, exemplo maior de aficcionados futebolísticos, continuam matando Europa a fora. Em português, o verbo escolhido para definir a atitude de apoiar uma equipe foi, muito apropriadamente, “torcer”. Torcer, como a lavadeira torce uma peça de roupa para dela tirar, a força, toda água; torcer, como se garroteia uma torneira para que feche; torcer, como o granjeiro mata um frango, destroncando seu pescoço. Isto faz a massa apreciadora do futebol: torce, e, por isso, se chama torcida. Em Pau Doce, cultivamos a paz, o sono, a birita, a malemolência, a tranqüilidade, o sossego, os jogos sexuais, uma luxuriazinha maneira. Nosso lema: fora toda a agressividade, toda a violência, toda competição, toda disputa, todos os vencedores!

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

46 Traidor, o grande herói

Todo país, toda nação, todo feudo, todo estado, toda pátria, toda cidade tem o seu traidor. Um traidor, uma traição novelesca, uma patranha rocambolesca. Não há história sem uma (ou inúmeras) filhadaputice escandalosa. Se não há traição, não é história. Será lenda, saga, epopéia, ficção, tudo menos história. Joaquim Silvério dos Reis, Calabar, Judas, Sacripanta de Trás-os-Montes, Brutus e tantos e tantos outros maravilhosos traidores são os reis da história, são os protagonistas fundamentais, sem os quais a história seria de uma chatice insuportável. Os heróis sequer existiriam, ou, na melhor das hipóteses, não passariam de personagens de segunda classe, sem brilho nem força, anêmicos, embaçados, minúsculos. Impossível imaginar a história de Cristo sem Judas ou a Inconfidência sem Silvério. A história, essa linha do tempo permeada de intrigas, heroísmos e baixarias, pode ser contada a partir de várias vertentes distintas. Do ângulo dos generais vencedores, dos alcoviteiros profissionais, das amantes estratégicas, dos baba-ovos asquerosos, dos fantasmas estimulantes, dos reis covardes e das rainhas dominadoras. Mas, nenhum deles será tão entusiasmante, tão dramático e tão veraz como o ângulo dos traidores. Atirados à condição mais abjeta pelos narradores oficiais, eles não têm nada a perder, nem a esconder. São garantia de emoção e de delírio. Executantes das ações mais nefastas e perpetradores das atividades mais vis, sempre pela voz e pela pena do oficialismo, eles são os responsáveis pelo colorido e pelo picante tempero da história. A vida de Cristo, por exemplo. Não dá para comparar a trivialidade das Bodas de Caná, o exagero próprio dos pescadores na enxurrada de peixes no Lago de Cafarnaum, a cinemascôpica transfiguração no Monte Tabor, nada disso é comparável ao momento glorioso da traição de Judas: apimentado pela ganância dos 30 dinheiros, enriquecido pela negação durante a Última Ceia, espetacularizado pela estratégia do beijo de denúncia no Jardim das Oliveiras e hollywoodianamente encerrado com o gran-finale do suicídio por enforcamento. Sem Judas a vinda de Cristo teria sido em vão. Toda uma vida destinada à salvação do mundo, incluindo um nascimento inexplicável, milagres aos montes, pregações para platéias de Fla-Flu, parábolas para lá de parabólicas (como as antenas), frases lapidares... tudo, tudo teria sido um esforço jogado fora se não fosse por Judas. Ele foi mais importante, muito mais importante que Pedro, João, Mateus, os outros apóstolos, Maria Madalena, Lázaro, Marta. Os outros poderiam não ter existido. Judas não. Judas foi o único imprescindível. E como Jerusalém teve seu grande e maravilhoso traidor há mais de 1970 anos, Pau Doce também teve o seu. O ano é incerto e nebuloso, ainda que saibamos exatamente quando foi. Era Governador-Geral paudocense o títere português, emputado, emputado não, enviado por Lisboa para enviadar nossa querida praia, Dom Anal Fabeto Jejuno Filho, o Çábio, quando houve uma mega-invasão estrangeira por terra, mar e ar, da qual participaram índios sioux e apaches, piratas polinésios, missionários da Igreja Universal do Reino de Zeus, políticos do PT (Partido dos Travestis), marinheiros desgarrados da esquadra de Pedro Álvares Cabral e marujos desertores da frota do Capitão de Mar-e-Guerra Luiz Alves de Lima e Lixa, além de incontáveis Legiões, Tronos e Potestades celestes (os que vieram pelo ar) com espadas flamejantes e asas multicoloridas. A Dom Anal cabia o comando da resistência, ou seja, Anal tinha que salvar o Pau. E como todo bom comandante que se preze, na hora da onça beber água, ele passou o comando ao seu lugar-tenente General Anus Atrás da Costa, o Pleonasno e entrou de licença médica. Pleonasno, por sua vez, que por mais asnático que fosse, não era de todo burro, como tinha umas horas-extras atrasadas, requereu-as e passou o bastão para seu imediato, o Sargento-mor de origem nipônica Kon-Okumi Manejo, o Gueixo, que percebendo o tamanho da encrenca, e não tendo nem horas-extras, nem férias, nem médico subalterno pra lhe quebrar o galho, simplesmente pirulitou-se, ou, numa linguagem mais castrense, desertou. Estava a cidadania de Pau Doce totalmente à mercê dos invasores, quando, do meio da plebe, surgiu um iluminado que, segurando a espada na mão, uma espada glande, glande não, grande e vigorosa, impôs-se com bravura aos invasores, gritando enlouquecidamente: “Uuuuuuuhhhhh! Uuuuuuuhhhhh! Uuuuuuuhhhhh! Xô malvados invasores! Bofes horríveis! xô!” O nome do herói até hoje permanece oculto pelas brumas das imprecisões e pela falta de pesquisa séria sobre o assunto. O que se sabe, de verdade, é que no auge da resistência, quando o herói, injustamente anônimo e desconhecido, conhecido apenas por Heróides (nada a ver com Herodes, por favor!), estava dando tudo de si (como se vê, atitude muito comum entre a cúpula bélica de então) quando, num ato de tresloucado destemor, estando quase a ponto de conseguir a expulsão dos penetrantes, justamente nesse momento culminante, surgiu ele, como que do nada, ele, o maior, ele D. Dante, o Traíra. Paudocense de boa cepa, como depois se soube, (filho primogênito de P. Dante, o Esnobe, sobrinho querido de V. Dante, o Enxuto e protegido de seu outro tio, C. Dante, o Enfadonho, mas rompido com o irmão mais novo destes, Q. Dante, o Estático), passou desapercebido por entre as forças (forças, evidentemente, é uma força de expressão) de defesa que se esforçavam por defender Pau Doce da sanha invasora dos invasores e, sorrateiramente, conseguiu esgueirar-se em direção às hostes inimigas. Uma vez no meio delas (das hostes), D. Dante, dedando, identificou-se como traidor nato e de boa formação, solicitando (exigindo, segundo outros relatos) ser conduzido à presença dos comandantes. Recebido pelo alto-comissariado das tropas alienígenas, deu todo o serviço (o que deixou os comandantes muito extenuados, mas felizes), além de todas as informações necessárias ao destroçamento dos resistentes, a começar pelo assassinato do Heróides. Indagado pelos chefes chegantes se agia daquela forma (já que não fora cooptado, nem subornado, e sequer convencido a trair) por vingança ou ódio dos seus concidadãos ou de seus líderes, respondeu que, absolutamente, agia como agia por vocação e predisposição genética, não aceitando qualquer contrapartida, quer na forma de prêmio, de privilégio ou de sinecuras. Os invasores, seguindo os toques e orientações de D. Dante, trucidaram os heróicos defensores de Pau Doce, culminando com a sangrenta execução do Heróides. A partir desse dia, dessa memorável traição, que deu brilho e encanto à sua história, Pau Doce, deixou de ser a terra da seriedade e do trabalho, formada apenas por descendentes de insossos e toscos lusitanos para, por dedantíssima obra, tornar-se a maravilhosa amálgama da incrível e majestosa miscigenação que hoje é, celebrizando-se como a terra do ócio absoluto ou quimicamente puro. Viva nosso herói-do-avesso! Vida D. Dante, o divino traidor!