domingo, 27 de junho de 2010

8 Mãe é um poema!

Mãe é mãe, sempre mãe. Esteja onde estiver e com quem. A minha, é um exemplo. Está lá em São Paulo, a quase 200 quilômetros daqui de Pau Doce, onde estou fazendo essa recuperaçãozinha, mas deve pensar em mim mais de 200 vezes por dia, sempre imaginando uma maneira de me aporrinhar e pegar no meu pé. Claro que ela não quer nem pegar no meu pé e, muito menos, me aporrinhar; quer, sim, me dar uma força, me proteger. Mas, mãe tem um jeito todo seu de proteger. Protege como quem cuida do que é seu, de seus pertences. A minha não vende, não aluga, não dá e não empresta. Por isso, sempre que posso, me mando de São Paulo, vôo em qualquer direção. Mas por mais que eu bata asas, sem tomar fôlego, nem parar, ela sempre me descobre. Nem bem chego no refúgio, ela já me detectou. Tenho pensando muito nessa sua capacidade de me descobrir, nesse sexto sentido, nessa infalível intuição e não encontro resposta. Terá ela parte com meu anjo da guarda? É bem possível. Eu, de minha parte, não confio nem um pouco nesse camarada. Ou será que ela continua freqüentando aquele “pai de santo” que por um pequeno atraso não foi meu pai? Não, esse ela me garantiu que não. Será que é por que sempre que aterrisso eu ligo pra pedir dinheiro? Ou por que, quando não consigo dormir, eu peço pra ela cantar minha canção de ninar preferida? Meus amigos sempre me criticam por isso (não pelo dinheiro, mas pela canção), mas o que é que eu posso fazer? É tão bom! Tem até umas namoradas que acham ruim em ficar fazendo cafuné, e segurando o telefone, enquanto eu ouço ela cantar. Insensíveis! Mas, minha mãe, apesar de tudo isso, é uma mulher especial. Culta, equilibrada, bonita, simpática, bem produzida, eficiente, produtiva e namoradeira como ela só. Sou muito orgulhoso dessas suas qualidades, principalmente da última. Gabo-me de ser filho único de muitos pais. Quer dizer, biológico um só. Mas, pai orgânico eu perdi a conta. Outro dia, num esforço de memória, consegui lembrar de 23. Só da minha fase adulta, por que quando eu era criança, adolescente, é tudo muito confuso, há como que uma névoa na minha cabeça. Antes dos 25, 28 anos não me recordo de nada. Tive pai professor, banqueiro, cantor, metalúrgico, relojoeiro, pastor, coletor de resíduos, lutador de boxe, marinheiro, palhaço (vários), criador de cachorros, bailarino, bicheiro, tradutor de braile, dogueiro, dirigente de clube de futebol, drag-queen e diversos políticos. Com exceção do professor, que cismava em me dar aulas de tudo e do coletor de resíduos, que, às vezes, queria me levar com ele para o trabalho, dos demais não tenho nenhuma queixa. Muito pelo contrário, gostei de todos. Ria com o dogueiro, comia cachorro-quente com o bailarino, dançava com o palhaço, ouvia o lutador de boxe cantar, tapeava o tradutor de braile, aprendi a roubar (de leve) com o dirigente de futebol, me apaixonei pela drag-queen e com os políticos desenvolvi meu ódio visceral ao trabalho e minha tolerância à tolerância (atoleirança!). E todos me tratavam muito, muito bem. Agora mamãe está mais tranqüila, mais assentada, menos frenética. Está namorando um bom homem, (e apenas esse), ainda que esteja casada com outro (muito bom também) e se separando de um terceiro (ótimo, esse). Seu atual namorado, ao qual já me referi antes, é uma pessoa especial, principalmente por que é meu devotado chefe. E me ama como a um filho. (E o que é que eu sou então?). Mas, sobre Teus falarei depois. Mamãe, como dizia, está mais centrada e concentrada. Porém, meu grande problema são meus amigos. São cafajestes e sem-vergonhas e eu tenho que escondê-los dela. Caso contrário, ela engole todos...

terça-feira, 22 de junho de 2010

7 Malhando e dançando

Tudo o que é bom dura pouco! Meus dias de veraneio estão terminando. Parece que foi ontem que eu pedi a Teus para me dar uns dias de folga. E já se passaram três meses. Eu nem comecei a descansar. Praticamente ainda não desfiz as malas. Mas, se o veraneio está acabando, não dá para desesperar. Ainda tenho alguns dias. Antes de voltar a falar com Teus, vou curtir o outoneio, o inverneio e o primavereio. Tá pensando que é só o verão que tem o privilégio de me ver descansando? As outras estações também merecem um lugar ao sol. O importante é que eu tenho aproveitado muito bem o tempo. Por exemplo, tenho feito o que nunca tenho tempo para fazer, mesmo quando tenho tempo: exercícios. Sei que esses odiosos estratagemas, por mais repugnantes que sejam, fazem bem à saúde: regulam a pressão arterial, baixam os índices de mau colesterol, diminuem o apetite sexual incontrolável, constrangem a secreção biliar (ou bilhar?), produzem serotonina seminal, apequenam as chagas hemorroidais, estimulam a sensação de dor motivada por contraição de cornitude aguda (é con-traição mesmo), atrofiam a proporções liliputianas a circunferência e comprimento do ponto euxino (comprimento que não chega a merecer nenhum cumprimento) e tantos outros estados de coma, não, de cama, como esses. O fato é que de tanto o Doutor Trombose Infartão, meu querido cardiologista, me encher o saco, (Subornado por minha mãe. Que Teus a tenha lá em São Paulo! - Teus, além de meu chefe, antropofageia a minha mãe), por telefone, carta e sinais de fumaça, cedi, vergonhosamente, e comecei a me exercitar. Faço exercícios com os olhos: abro-os algumas vezes, quando me chamam, (nem todas, que eu não quero me esfalfar) e volto a fechá-los lentamente. Faço essa violência cinco, seis, até dez vezes ao dia. Procuro exercitar o maxilar (em especial, o inferior) sempre que como; como como comedidamente, como exercício é comédia. Faço estimulação cutânea ao tomar banho de ducha, com aqueles pingões chocantes chocando-se contra minha epiderme; porém, como meus banhos são, preferencialmente, de imersão, a estimulação vai pras picas. Executo, também, um malabarismo muito apreciado pelas mulheres, conhecido como “Língua, pra que te quero?”, muito complicado de fazer e que consiste em colocar, tão rápido quanto possível, alternadamente, a língua na testa e no pescoço, na testa e no pescoço, na testa e no pescoço, até o orgas... quer dizer, até a mulher pedir para parar. E pra você, leitor, não pensar que eu fico o tempo todo morgando, tenho participado de várias atividades esportivas e culturais. Uma delas, muito interessante, foi “A penetração do Pau Doce”. Um tipo de caminhada competitiva, que consiste em penetrar na nesga de Mata Atlântica que circunda Pau Doce. Também conhecida como “Se enfiando no Pau Doce”, que é como se chama a prova feminina. Neste ano, na classificação geral, que inclui mulheres e homens, cinco chegaram em sexto lugar, um no quinto e dois no quarto (claro, uma mulher e um homem), não tendo havido ninguém classificado nos três primeiros lugares. Essa ausência de dianteiros, deve-se à regra da competição, que considera a classificação, não a partir da ordem de chegada num mesmo ponto, mas em faixas distintas da selva, quanto maior a penetração, quanto mais dentro dela, melhor é a pontuação. O ponto de partida é na beira da praia. Neste ano, como já disse, cinco chegaram em sexto (pararam ainda na faixa de areia da praia), um chegou em quinto (no barzinho em frente à rua da praia) e dois no quarto (esses foram desclassificados, pois mal começou a competição a abandonaram e foram para o quarto do motelzinho Nossa Senhora dos Necessitados). Minha mãe ficou toda orgulhosa quando soube que, entre tantos participantes, eu havia chegado no quarto. Outra grata recordação, que vou levar daqui quando voltar ao trabalho, será a do “Baile da Saudade de Pau Doce”, iniciado, como em todos os anos, ao som da emocionante valsa “Saudades do Pau Doce”. Neste baile, é de praxe, obrigatório mesmo, (já que se trata de um preito de lembranças de algo que se perdeu e que tanto se quer reviver), as damas vestirem-se de luto. Luto fechado. O lema delas é “De luto e sem um puto”, no qual o dito puto não é, como pode parecer à primeira vista, uma alusão à falta de dinheiro, mas sim à carência de machos no baile. Abrilhantado pela banda feminina “Xá-nã-nã-nã-Xá-nã-nã-nã-Xá-nã-nã-nã-Xá-nã-nã-nã”, e do conjunto vocal “Gargarejos Anuais”, a noite dançante foi um enorme sucesso. Pessoalmente, tive sérios problemas no que concerne à minha performance como bailarino. Não que eu estivesse alcoolizado, ou coisa parecida. De fato estava, (alcoolizado, não coisa parecida), mas isso não foi o elemento desestabilizador de minha dança ou das minhas tentativas. O problema foi completamente outro, foi semântico. Ocorre que eu havia sido previamente convidado, por carta, para servir de escort-boy (“acompanhante”, para os que não entendem inglês e não “esse corte de boi”) para as jovens moçoilas de uma associação de pesquisa, segundo pude presumir pelo convite que me foi gentilmente enviado. A entidade denominava-se, (com todas as honras acadêmicas e científicas): “Pró-Teses para Aprender a Caminhar, Brasil!”. Que beleza, pensei, um grupo de universitárias maravilhosas soltas aqui no Pau Doce, longe da vigilância dos pais, da família e do rigor dos estudos imposto por suas burocratíssimas e intermináveis “teses”! Teses enormes, imaginava eu. Verdadeiros tésões. Vou dançar até rachar e depois, escolher a mais bonita e... Que desilusão! Que desengano! Que desastre! Quando cheguei ao baile, e vi o estado grupo que estava a minha espera, me desesperei. A mais novinha devia ter debutado dançando no Baile da Ilha Fiscal, o último baile do Império Brasileiro. Mal pude encontrar em meu bolso o convite amassado, e relendo-o, entendi tudo. Não era um grupo de universitárias em fogo uterino e, sim, as participantes de uma associação de senhoras da 5ª Idade (com mais de 110 anos) fazendo um périplo de recuperação após cirurgia de implantação de próteses ortopédicas: “Próteses para aprender a caminhar”.(Brasil).

quinta-feira, 17 de junho de 2010

6 Enredando o samba

Na Itinerância precedente falei, de passagem, sobre a escola de samba fundada junto ao Centro de Umbanda dos Prejudicados. Não me aprofundei, como sempre gosto de me aprofundar, porque o buraco era pequeno, quer dizer, o espaço era exíguo, já não havia mais o espaço que o “Grêmio Recreativo Mocidade Dependente de Pau Doce” merece. Em primeiro lugar, é preciso dizer que essa Mocidade Dependente de Pau Doce aumenta a cada dia. A Mocidade, não o Pau Doce. Bem, o Pau Doce também aumenta, pois não é o Pau Doce que está dentro da Mocidade, mas o contrário. Ou não? Assim, se a Mocidade aumenta, cresce o Pau Doce. É elementar. Mas, como dizia, a Mocidade Dependente não para de crescer. Em dependência, pensará você desavisado leitor, pois se crescesse em mocidade, logo mocidade não mais seria e sim “velhicidade”. Já imaginou: G. R. Velhicidade Dependente de Pau Doce”. Que os velhos sejam dependentes num monte de coisas, vá lá, mas em pau doce? Não seria, certamente, um bom nome para uma escola de samba, ou de qualquer outra escola. No máximo, pode uma escola, de samba em especial, ter uma Velha Guarda. Pode não, deve. E esta tem: a velha guarda Dona Inês Crescência da Mocidade, uma antiga guarda florestal, que após aposentar-se ficou por aqui. Por delicadeza a chamamos de “Velha Guarda” e não de “Guarda Velha”, o que seria inconcebível. Mas, a Mocidade não cresce nem em dependência (será?), nem em idade, quer dizer, pode crescer tanto em dependência quanto é certo que cresça em idade, mas isso não me interessa, até porque é óbvio. Falo, (falo?), quero falar que ela não para de aumentar em número de participantes. E quais as razões desse vertiginoso crescimento? Em primeiro lugar, porque, como você já sabe, afortunado leitor, esta Escola é um antro (no bom sentido) de manutenção. Nela, nada muda. Tudo sempre fica como está. Como estava antes é como estará depois. E isso, essa solidez permanente, numa época em que tudo é areia movediça, em que você sai de casa e quando quer voltar, não consegue, pois sua casa já mudou de lugar, já se mandou, essa solidez, então, atrai, catalisa, conforta, aninha você, mima, pega você no colo e põe para dormir e ainda dá um beijinho na boca. De língua. De língua ou linguagem fácil de entender, porque dentro dela (da Escola) todo mundo é povo e está ali pro que der e vier (mais pro que der do que pro que vier). Um segundo motivo da hipertrofia, é que, como em Pau Doce ninguém faz nada e, onde não há nada pra fazer, uma escola de samba na qual você só precisa continuar fazendo nada, sem que para isso tenha que fazer nada, é Delícia pura (a margarina, sem pão). Além disso, ela só desfila uma vez por ano e, mesmo assim, se os turistas fizerem muita questão. Caso contrário, ficam todos deitados na areia (durante o dia), ou sentados na calçada (durante a noite), relembrando os desfiles dos anos anteriores (a maioria, rememorativos, também) e cantando trechos do edificante samba enredo. Este é uma jóia e um primor do gênero. Composto por Zequinha do Pau Doce, Pintinho da Procela, Didu da Dadi, Gérmen do Cavaco, Turibinho da Dependente, Semputto do Ago-go, Loxas da Amargueira, Gaguinho do Estribilho, Dadeira da Dinorá, Xuxu de Morro Andando e Armando Soares da Silva Pinto, seleto grupo dos melhores compositores da Escola, todos autores da melodia. Quanto à preciosa e requintada letra, foi terceirizada, tendo sido contratada uma empresa especializada em letras de samba enredo que, dizem, cobrou uma nota preta, como era esperado de uma empresa especializada em letras de samba enredo, mas que, desconfia-se, tenha sido uma empresa de fachada, estando por traz dela, os mesmos onze compositores da música (um verdadeiro samba enredo). Composto segundo os mais rígidos cânones do gênero, que, como se sabe, tem suas raízes em Homero, o primeiro compositor de samba enredo da história com a sua imorredoura “Odisséia dos glabros gregos nas terras do Reino de Tróia, envolvidos por Helena, a Rainha da tramóia”. Oito estrofes de seis versos, em rima alternada, todos alexandrinos (12 sílabas), menos alguns heróicos ou sáficos (10 sílabas) e outros hipercataléticos em relação aos heróicos e cataléticos relativamente aos alexandrinos. Ao final dos quarenta e oito versos, um repique das primeiras quatro sílabas do primeiro verso da primeira estrofe produz, sensatamente, o retorno ao início. Sempre que possível, a melodia deve ser interseccionada de La-ra-la-iás não muito afinados (para assemelhar-se aos das grandes escolas cariocas). Quanto ao conteúdo, reconstrói-se e se recompila os mais importantes aspectos da história de Pau Doce: a chegada dos desbravadores, as sensações que sentiam, seus sofrimentos, suas angústias, suas alergias, suas náuseas marinhas e seus furúnculos; os sentimentos do povo, o pendão maior paudocense, com seus orgulhosos símbolos: a Espada e o Chifre (que, aliás, são inseparáveis). Vamos à letra, então. Quem quiser cantar e, não sabendo a melodia, (na realidade, ninguém sabe), pode utilizar a de qualquer outro samba enredo que dá na mesma.

No anal da nossa querida história
Num dia trinta e um de fevereiro
Desembarcou aqui cheio de glória
Tão bonito como galo no poleiro,
Dom Cornélio Manso, o rei da escória,
Piratão com pinta de costureiro.


Vinha ele lá todo faceiro
Segurando o ereto mastro na mão,
Coçando o saco cheio de dinheiro,
Saboreando por antecipação
A surubagem em solo brasileiro
Sua zorra aqui na zona do agrião.


Vinha com saudades da terrinha
E de com quem ele casou no mês de maio,
Sem tempo nem de dar uma bimbinha,
Já partiu pra encher o seu balaio,
Deixando a linda e pura mulherzinha
Nas mãos do Ricardão, o seu lacaio.


Declarou com voz de quem se inflama:
“Toma conta, pra mim, ó bom Ricardo
De Pureza Castiça, minha dama,
Cante a ela seus versos de bom bardo,
Não se aproxime, porém, da sua cama
E nem permita que ela pegue no seu dardo”.

E, depois de dois anos a navegar,
Uma muito boa-nova enfim lhe veio,
Aquilo que sempre esteve a sonhar,
Mesmo quando lhe agarrava um bom mareio,
Finalmente podia, assim, gritar:
“A Pureza está de bucho cheio!”.

Como na vida nada ocorre em vão,
A boa notícia, por sorte, coincidiu
Com a chegada do nosso campeão
A esta praia, a mais linda do Brasil.
E ele bramiu com gozo e satisfação:
“Vai todo mundo pra puta que pariu!”.


A nosso grande fundador Cornélio Manso
Este samba de homenagem e gratidão,
Mas, mais que a ele saudamos neste balanço
Aquele que mora em nosso coração,
Não o Cornélio, mas o que afogou o ganso,
O nosso mito, o nosso herói, o Ricardão.


E Pau Doce canta a glória verdadeira
De Cornélio e de Ricardo com fervor
E para honrar aos dois da melhor maneira,
Simbolizando de cada um o seu valor,
Em homenagem colocamos na bandeira
Uma espada e um chifre, sim senhor.

E no anal...

sábado, 12 de junho de 2010

5 Os prejudicados

Coisas curiosas acontecem em Pau Doce. Às vezes um fato sem qualquer importância, por alguma razão, perdura, se avoluma aos poucos, sobrevive no tempo, até transformar-se em algo da própria cultura paudocense. Um deles, por exemplo, é o fato desta pequena e paradisíaca praia, perdida no litoral norte de São Paulo, em nada lembrando uma estação de águas medicinais ou uma região de curas carismáticas, ter se transformado num centro de peregrinações de enfermos acometidos de males que afligem o nervo orgásmico e excretor masculino, tais como: flacidez peniana inconsolável, senilidade broxante precoce, implosão molecular de prótese, desemborrachamento abrupto irreversível, decapitação involuntária acidental, decapitação voluntária antropofágica, decapitação por imperícia de terceiros, decapitação por susto inesperado, obstrução do conduto central, elefantíase gonorréica, impossibilidade de constatação visual e tátil (Síndrome do Pequeno Polegar ou do Pau Impaupável) e tantas e tantas outras desgraças que soem abater-se sobre o viril artefato. E por que terá Pau Doce se tornado semelhante fenômeno peregrinativo? Estará se questionando o paquidérmico leitor. Consta que as primeiras famílias fundadoras da vila, falando um português castiço, se referiam ao padre local não como vigário, mas como “Cura”. E, assim, tornou-se costume o povo referir-se a ele como Cura de Pau Doce. E daí, em certo momento do passado remoto, algum desavisado ouvindo a referência ao “Cura de Pau Doce” achou que fosse “a cura do pau doce” e conhecendo alguém com disfunção erétil ou problema assemelhado, intuiu, equivocadamente, que ali, naquela praia, ocorriam curas milagrosas específicas para moléstias e enfermidades do monumento procriador. O povo, sabiamente como sempre, calou-se sobre o engano e transformou-o num engodo lucrativo. Assim, São Vinte de Pau Doce transformou-se no santo protetor da preservação da espécie. Mas, como o paudocense é acima de tudo um sincrético, é aqui que ocorre uma das maiores manifestações candombleísticas de todo o litoral brasileiro: o “dia de Pau Doce do Centro de Umbanda dos Prejudicados”. Festa afro-brasileira cuja comissão organizadora é formada pelas mesmas pessoas da comissão organizadora da festa de São Vinte. Só mudam os cargos. Bom, mudam também as roupas, o local, os cânticos, os instrumentos musicais e as cerimônias. Diferentes, também, os idiomas oficiais: latim acaipirado numa e iorubá acaiçarado noutra. O nome deste grande cenáculo do candomblé nacional: Centro de Umbanda dos Prejudicados, remonta à época da escravidão, ou seja, 1930, 1940, mais ou menos (já que a extinção do escravismo por estas bandas ocorreu na década de 1960, com a ascensão do grande time do Santos, repleto de crioulões imortais, como Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe, (este era branco, mas não podia faltar na escalação)). Assim, os pobres escravos, juntamente com seus irmãos, os escravos pobres, eram “a priori” culpados por tudo o que ocorresse de mal à vila: falta de peixe, enchente, epidemia de disenteria e outros pererecos mais. Culpados e pronto! Sem julgamento, sem judicatório como se dizia então. Eram pré-julgados, “pré-judicados”. O Centro era o abrigo, o asilo, o refúgio, o amparo dos prejudicados. Finda a escravidão, manteve-se o nome, como manda a boa e saudável tradição. Foi também criada, com o objetivo de levantamento de fundos para a manutenção do Centro, uma escola de samba, que teria, (e continua tendo), sempre o mesmo enredo, as mesmas fantasias e o mesmo samba, não havendo, em hipótese alguma, necessidade de desnecessárias alterações, já que, a cada ano, a massa principal dos turistas é sempre nova. Vivos esses Prejudicados! E a grande festa do terreiro paudocense é realizada na época inversa à do padroeiro. São Vinte, em julho, e, em janeiro, o “Dia de Pau Doce no C.U. dos Prejudicados”.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

4 São Vinte de Pau Doce, rogai por nós!

Ontem foi o dia do padroeiro São Vinte de Pau Doce. Que festa! A vila toda enfeitada. Pau Doce cheio de bandeirinhas, eventos, fogos. Principalmente fogos, de todos os tipos: de whisky, de vodca, de cerveja e de cachaça mesmo. Missa no campo de futebol, jogo de bola no salão da igreja, torneio de tranca (um tipo de baile onde se dança muito agarrado), oferendas na praia ao EXU VEIRINHO e ao EXU RASQUINHO, (Veirinho e Rasquinho formavam, no passado, uma dupla caipira local, que após sua trágica desencarnação – foram desencarnados pela turba ensandecida pela criminosa desafinação do duo – transformaram-se nos principais Exus do candomblé paudocense), campeonato de ronco e apinéia, disputa de afogamento de ganso (apesar dos protestos da SOPROGAN, sociedade protetora dos próprios), torneio de descabelamento de palhaço (em que pese a vaia oriunda da cantina clôwnica, a Palha Assada), uma grande desfeijoada (anti-feijoada na qual o famoso legume pretinho é substituído por longos fiozinhos de massa de farinha de trigo cozidos e misturados a um guisado - que parece substituir as orelhas, pés, rabos de porco, o paio, a linguiça e a carne-seca - feito de suco de tomate com carne de vaca moidinha e orégano, tudo coberto por espessa camada de queijo ralado, evidentemente, alegorizando a farofa, (Apesar de ser uma comida autóctone e autenticamente caiçara, lembra muito um prato típico da colônia italiana)), arena armada para o público assistir a brutais e, às vezes, sangrentas lutas entre aranhas e serpentes, e muitos folguedos com malabaristas, equilibristas, trapezistas e os internacionalmente afamados (mal afamados, diga-se de passagem), engolidores de espada e engolidores de fogo, conhecidos como os “Engolidores de Pau Doce”. Dispostos sobre as calçadas (dispostos é uma força de expressão: quem diz dispostos não dispõe de um dispositivo discernidor para descrever o indescritível), amontoados, digamos, produtos das mais variadas procedências, em especial, da China, de Taiwan e de Muzambinho do Leste, todos oferecidos como localmente manufaturados, mesmo em se tratando de modens para laptop e pênis de silicone (aqui em Pau Doce?). Porém, o grande sucesso de vendas ficou mesmo com o artesanato, tanto o dos “Órfãos de Jimmy Hendrix” como o dos Caiçaralhos, os “Caiçaras Bandalhos”: lingeries, cosméticos naturais, bonecas Barbies feitas de sabugo de milho, mel de ovelhas (típico mel paudocense retirado de favos cultivados na lã das ovelhas), chás afrodisíacos, licores americodizíacos, algumas infusões asiodizíacas e as carimbadíssimas chapeletas (pequeno chapéu de aba de 360 graus e 1 centímetro de largura, copa octogonal, confeccionado em folha de bananeira nanica): as Chapeletas de Pau Doce. Das diversões mais apreciadas, em primeiro lugar disparado, ficaram as apresentações do ceguinho Sé Guinho (Antônio Sé de Oliveira Guinho), o adivinho, que, aliás, além de adivinho se julga o divino, pelo dom que acredita possuir. O mais curioso do fenômeno Sé Guinho, é que ele deve ser o único adivinho no mundo socialmente construído. Explico: Sé Guinho há anos faz adivinhações, milhares por mês, com uma incrível regularidade nas previsões – nunca acertou uma. Uminha sequer. E como se explica que continue na profissão e tão autoconfiante? Deve estar se perguntando o atoleimado leitor. Tudo começou no final da sua adolescência: seus amigos, um grupo de degenerados da pior espécie, resolveram se divertir às suas custas. Como todo cego, Sé Guinho não enxergava (continua não enxergando, segue ceguinho) e, ao não enxergar, era sempre enganado pelos filhos da puta dos amigos, que, num segundo momento, aperfeiçoando a sacanagem, se divertiam fazendo-lhe perguntas para que adivinhasse as respostas sobre o que quer que fosse. Estas, por mais absurdas que fossem, eram sempre consideradas certas. Sé Guinho, no começo, parecia desconfiar, mas, aos poucos, foi ganhando confiança, batia palmas, pulava de alegria, emocionava-se às lagrimas, até virar o que é hoje, o idolatrado Ceguinho Sé Guinho, também chamado por muitos de Sé Guinho Ceguinho (nunca entendi como jamais se equivocam com a inversão dos nomes). Outra razão do seu sucesso é que, como erra sempre, com certeza, não havendo hipótese de acerto, (o que pode ser estatisticamente comprovado), os que o procuram fazem exatamente o contrário do que prediz. E ficam felicíssimos. Sua estrutura de apoio (formada pelos mesmos amigos criadores do seu mito) administra muito bem esse jogo de simulacros, não permitindo nunca que Sé Guinho veja o que de fato acontece (o que é moleza), escondendo dele a grana que entra (o que é muito mais dureza). Nunca explicaram, também, por que o guru não aceita, como as demais personalidades daqui, ser chamado de Sé Guinho do Pau Doce. É possível que tenha receio de que as pessoas, ao invés de usarem o seu nome verdadeiro “Sé Guinho do Pau Doce”, o descriminem, fazendo criminosa referência à sua deficiência, chamando-o de “Ceguinho do Pau Doce”. Vai saber?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

3 O Saco do Pau Doce

O bom de Pau Doce é que aqui você pode ficar um dia inteiro sem fazer nada, passar o dia seguinte no completo ócio, para no terceiro não sair da inércia contemplativa, tudo isso sem um pingo de remorso. Nada mais molesto e desagradável que você ficar descansando e todo mundo em volta dando um duro danado, só pra sacanear. Não que em Pau Doce não tenham trabalhadores. Tem e tem muitos. Mas, a diferença é que aqui os pescadores não pescam, os pedreiros não assentam um tijolo, os varredores não pegam na vassoura, os entregadores jamais entregam e os maridos... Os maridos? Vão bem, obrigado! Pudera, são caçadores de Pau Doce, vendedores de Pau Doce, demolidores de Pau Doce... Esse lazer coletivo e endêmico, longe de ser motivado por razões torpes como preguiça, moleza e vagabundagem, é resultado da extrema consciência coletiva e do espírito de coesão social do paudocense: o trabalho físico, explícito, público é quase pornográfico, espanta os turistas e agride a sensibilidade cidadã. Quando absolutamente inevitável, deve ser praticado à socapa, à sorrelfa, deve ser furtiva e onanisticamente solitário. Em público, só é tolerável o trabalho intelectual, sempre e quando não denote muito esforço, como conjeturar se já é dia ou ainda é noite, concluir se o companheiro de prosa, calado há 3 horas, dormiu, está fazendo uma pausa reflexiva ou definitivamente está de saco cheio do nosso papo “esfria mingau”, ou filosofar se não é muito melhor comer uma cana do que continuar pagando pensão para a ex-mulher. Falando em ex-mulher, outra vantagem de Pau Doce é a ausência total desse tipo de animal irracional, urbano, careta, anti-social, contagioso, estrábico, pegajoso, letal, anaeróbico, fértil, inseguro, chunfro, cavernoso, chacripentolha, nauseante, bonifrate, insípido e, freqüentemente corno (aliás, sua única qualidade), que é o “casado”. Casado ou casada, tanto faz. Tal espécime é tão discriminado e indesejado que há aqui um despachante – não direi o nome, é óbvio – especializado em fabricar “certidões de casamento com averbação de separação” falsas, para solteiros que queiram prestígio ou algum casado foragido que queira se esconder. Ah, que maravilha é deitar na areia da praia e dormitar à sombra de frondosas descasadas em flor! Elas vêm para cá para ficar sentadas “no” Pau Doce o dia inteiro, tomando sol e batida de grumixama. Você leitor, menos avisado e desconhecedor dos mais arraigados e profundos costumes de nossa gente, pode ter estranhado, e até achado que tenha sido apelação deste narrador, a utilização da expressão “sentadas no Pau Doce”. Engano, ledo engano. Nosso povo, das praias ao interiorzão, simplesmente não preposiciona as palavras designativas de cidade ou lugar: “em São Vicente”, ou “em São Paulo”, mas juntam o artigo, em geral, e inesperadamente, o masculino: “no Sahy”, “no Toc-Toc”, “no Paúba”. Assim, a esta paradisíaca paisagem referem-se, não usando só a preposição: “lá em Pau Doce”, mas com o indefectível artigo masculino: “lá no Pau Doce”. Porém, como demonstração (com direito a prova e contraprova) do amplo e alargado espírito aberto da gente paudocista, ao contrário do que acabo de afirmar, conforme o jeitão da frase (isto é que é pensamento científico, o resto é conversa mole), não se usa o artigo, qualquer artigo, masculino ou feminino, só a preposição “em”. Aproveito para elucidar ao desinformado e desimaginativo leitor que, quanto ao gênero, Pau Doce é escandalosamente bissexual, podendo tanto ser chamado de “a Pau Doce” como ser designada como “o Pau Doce”. Dependendo da preferência do freguês ou da opção da freguesa. Depois de tão imprescindível explicação filolinguísticalhorda, é preciso salientar que quando disse acima que “elas ficam sentadas no Pau Doce o dia inteiro”, quis me referir à areia da praia, já que à noite elas sentam em outro Pau Doce, que é o dos barzinhos, calçadas e botequins. Mas, enquanto há sol, o palco é a praia. Praia... Aquele que nunca teve a ventura de conhecer o Pau Doce (nunca é tarde), ou porque trabalha o tempo todo ou porque ainda é casado (situações, aliás, redundantes), não imagina ser esta, geograficamente uma praia diferente. Ela é quase fechada, como uma lagoa ligada ao mar por uma pequena saída. Aquilo que os especialistas chamam de “saco”. Nos mapas náuticos que detalham a costa brasileira está assinalado: “Saco do Pau Doce”. Há, inclusive, aqui um famoso campeonato de natação: “Travessia do Saco do Pau Doce”, neste ano vencido pela nadadora local Gina Silva, a”Diva”. No dia em que cheguei, ainda havia faixas saudando a campeã: “Viva Gina do Pau Doce” e “Grande Festa para a nossa Diva Gina, no Pau Doce”. Quando li as faixas, sem saber do que se tratava, entendi que, finalmente, havia encontrado o meu lugar. Definitivo!