quinta-feira, 17 de junho de 2010

6 Enredando o samba

Na Itinerância precedente falei, de passagem, sobre a escola de samba fundada junto ao Centro de Umbanda dos Prejudicados. Não me aprofundei, como sempre gosto de me aprofundar, porque o buraco era pequeno, quer dizer, o espaço era exíguo, já não havia mais o espaço que o “Grêmio Recreativo Mocidade Dependente de Pau Doce” merece. Em primeiro lugar, é preciso dizer que essa Mocidade Dependente de Pau Doce aumenta a cada dia. A Mocidade, não o Pau Doce. Bem, o Pau Doce também aumenta, pois não é o Pau Doce que está dentro da Mocidade, mas o contrário. Ou não? Assim, se a Mocidade aumenta, cresce o Pau Doce. É elementar. Mas, como dizia, a Mocidade Dependente não para de crescer. Em dependência, pensará você desavisado leitor, pois se crescesse em mocidade, logo mocidade não mais seria e sim “velhicidade”. Já imaginou: G. R. Velhicidade Dependente de Pau Doce”. Que os velhos sejam dependentes num monte de coisas, vá lá, mas em pau doce? Não seria, certamente, um bom nome para uma escola de samba, ou de qualquer outra escola. No máximo, pode uma escola, de samba em especial, ter uma Velha Guarda. Pode não, deve. E esta tem: a velha guarda Dona Inês Crescência da Mocidade, uma antiga guarda florestal, que após aposentar-se ficou por aqui. Por delicadeza a chamamos de “Velha Guarda” e não de “Guarda Velha”, o que seria inconcebível. Mas, a Mocidade não cresce nem em dependência (será?), nem em idade, quer dizer, pode crescer tanto em dependência quanto é certo que cresça em idade, mas isso não me interessa, até porque é óbvio. Falo, (falo?), quero falar que ela não para de aumentar em número de participantes. E quais as razões desse vertiginoso crescimento? Em primeiro lugar, porque, como você já sabe, afortunado leitor, esta Escola é um antro (no bom sentido) de manutenção. Nela, nada muda. Tudo sempre fica como está. Como estava antes é como estará depois. E isso, essa solidez permanente, numa época em que tudo é areia movediça, em que você sai de casa e quando quer voltar, não consegue, pois sua casa já mudou de lugar, já se mandou, essa solidez, então, atrai, catalisa, conforta, aninha você, mima, pega você no colo e põe para dormir e ainda dá um beijinho na boca. De língua. De língua ou linguagem fácil de entender, porque dentro dela (da Escola) todo mundo é povo e está ali pro que der e vier (mais pro que der do que pro que vier). Um segundo motivo da hipertrofia, é que, como em Pau Doce ninguém faz nada e, onde não há nada pra fazer, uma escola de samba na qual você só precisa continuar fazendo nada, sem que para isso tenha que fazer nada, é Delícia pura (a margarina, sem pão). Além disso, ela só desfila uma vez por ano e, mesmo assim, se os turistas fizerem muita questão. Caso contrário, ficam todos deitados na areia (durante o dia), ou sentados na calçada (durante a noite), relembrando os desfiles dos anos anteriores (a maioria, rememorativos, também) e cantando trechos do edificante samba enredo. Este é uma jóia e um primor do gênero. Composto por Zequinha do Pau Doce, Pintinho da Procela, Didu da Dadi, Gérmen do Cavaco, Turibinho da Dependente, Semputto do Ago-go, Loxas da Amargueira, Gaguinho do Estribilho, Dadeira da Dinorá, Xuxu de Morro Andando e Armando Soares da Silva Pinto, seleto grupo dos melhores compositores da Escola, todos autores da melodia. Quanto à preciosa e requintada letra, foi terceirizada, tendo sido contratada uma empresa especializada em letras de samba enredo que, dizem, cobrou uma nota preta, como era esperado de uma empresa especializada em letras de samba enredo, mas que, desconfia-se, tenha sido uma empresa de fachada, estando por traz dela, os mesmos onze compositores da música (um verdadeiro samba enredo). Composto segundo os mais rígidos cânones do gênero, que, como se sabe, tem suas raízes em Homero, o primeiro compositor de samba enredo da história com a sua imorredoura “Odisséia dos glabros gregos nas terras do Reino de Tróia, envolvidos por Helena, a Rainha da tramóia”. Oito estrofes de seis versos, em rima alternada, todos alexandrinos (12 sílabas), menos alguns heróicos ou sáficos (10 sílabas) e outros hipercataléticos em relação aos heróicos e cataléticos relativamente aos alexandrinos. Ao final dos quarenta e oito versos, um repique das primeiras quatro sílabas do primeiro verso da primeira estrofe produz, sensatamente, o retorno ao início. Sempre que possível, a melodia deve ser interseccionada de La-ra-la-iás não muito afinados (para assemelhar-se aos das grandes escolas cariocas). Quanto ao conteúdo, reconstrói-se e se recompila os mais importantes aspectos da história de Pau Doce: a chegada dos desbravadores, as sensações que sentiam, seus sofrimentos, suas angústias, suas alergias, suas náuseas marinhas e seus furúnculos; os sentimentos do povo, o pendão maior paudocense, com seus orgulhosos símbolos: a Espada e o Chifre (que, aliás, são inseparáveis). Vamos à letra, então. Quem quiser cantar e, não sabendo a melodia, (na realidade, ninguém sabe), pode utilizar a de qualquer outro samba enredo que dá na mesma.

No anal da nossa querida história
Num dia trinta e um de fevereiro
Desembarcou aqui cheio de glória
Tão bonito como galo no poleiro,
Dom Cornélio Manso, o rei da escória,
Piratão com pinta de costureiro.


Vinha ele lá todo faceiro
Segurando o ereto mastro na mão,
Coçando o saco cheio de dinheiro,
Saboreando por antecipação
A surubagem em solo brasileiro
Sua zorra aqui na zona do agrião.


Vinha com saudades da terrinha
E de com quem ele casou no mês de maio,
Sem tempo nem de dar uma bimbinha,
Já partiu pra encher o seu balaio,
Deixando a linda e pura mulherzinha
Nas mãos do Ricardão, o seu lacaio.


Declarou com voz de quem se inflama:
“Toma conta, pra mim, ó bom Ricardo
De Pureza Castiça, minha dama,
Cante a ela seus versos de bom bardo,
Não se aproxime, porém, da sua cama
E nem permita que ela pegue no seu dardo”.

E, depois de dois anos a navegar,
Uma muito boa-nova enfim lhe veio,
Aquilo que sempre esteve a sonhar,
Mesmo quando lhe agarrava um bom mareio,
Finalmente podia, assim, gritar:
“A Pureza está de bucho cheio!”.

Como na vida nada ocorre em vão,
A boa notícia, por sorte, coincidiu
Com a chegada do nosso campeão
A esta praia, a mais linda do Brasil.
E ele bramiu com gozo e satisfação:
“Vai todo mundo pra puta que pariu!”.


A nosso grande fundador Cornélio Manso
Este samba de homenagem e gratidão,
Mas, mais que a ele saudamos neste balanço
Aquele que mora em nosso coração,
Não o Cornélio, mas o que afogou o ganso,
O nosso mito, o nosso herói, o Ricardão.


E Pau Doce canta a glória verdadeira
De Cornélio e de Ricardo com fervor
E para honrar aos dois da melhor maneira,
Simbolizando de cada um o seu valor,
Em homenagem colocamos na bandeira
Uma espada e um chifre, sim senhor.

E no anal...

Nenhum comentário:

Postar um comentário