quarta-feira, 2 de junho de 2010

3 O Saco do Pau Doce

O bom de Pau Doce é que aqui você pode ficar um dia inteiro sem fazer nada, passar o dia seguinte no completo ócio, para no terceiro não sair da inércia contemplativa, tudo isso sem um pingo de remorso. Nada mais molesto e desagradável que você ficar descansando e todo mundo em volta dando um duro danado, só pra sacanear. Não que em Pau Doce não tenham trabalhadores. Tem e tem muitos. Mas, a diferença é que aqui os pescadores não pescam, os pedreiros não assentam um tijolo, os varredores não pegam na vassoura, os entregadores jamais entregam e os maridos... Os maridos? Vão bem, obrigado! Pudera, são caçadores de Pau Doce, vendedores de Pau Doce, demolidores de Pau Doce... Esse lazer coletivo e endêmico, longe de ser motivado por razões torpes como preguiça, moleza e vagabundagem, é resultado da extrema consciência coletiva e do espírito de coesão social do paudocense: o trabalho físico, explícito, público é quase pornográfico, espanta os turistas e agride a sensibilidade cidadã. Quando absolutamente inevitável, deve ser praticado à socapa, à sorrelfa, deve ser furtiva e onanisticamente solitário. Em público, só é tolerável o trabalho intelectual, sempre e quando não denote muito esforço, como conjeturar se já é dia ou ainda é noite, concluir se o companheiro de prosa, calado há 3 horas, dormiu, está fazendo uma pausa reflexiva ou definitivamente está de saco cheio do nosso papo “esfria mingau”, ou filosofar se não é muito melhor comer uma cana do que continuar pagando pensão para a ex-mulher. Falando em ex-mulher, outra vantagem de Pau Doce é a ausência total desse tipo de animal irracional, urbano, careta, anti-social, contagioso, estrábico, pegajoso, letal, anaeróbico, fértil, inseguro, chunfro, cavernoso, chacripentolha, nauseante, bonifrate, insípido e, freqüentemente corno (aliás, sua única qualidade), que é o “casado”. Casado ou casada, tanto faz. Tal espécime é tão discriminado e indesejado que há aqui um despachante – não direi o nome, é óbvio – especializado em fabricar “certidões de casamento com averbação de separação” falsas, para solteiros que queiram prestígio ou algum casado foragido que queira se esconder. Ah, que maravilha é deitar na areia da praia e dormitar à sombra de frondosas descasadas em flor! Elas vêm para cá para ficar sentadas “no” Pau Doce o dia inteiro, tomando sol e batida de grumixama. Você leitor, menos avisado e desconhecedor dos mais arraigados e profundos costumes de nossa gente, pode ter estranhado, e até achado que tenha sido apelação deste narrador, a utilização da expressão “sentadas no Pau Doce”. Engano, ledo engano. Nosso povo, das praias ao interiorzão, simplesmente não preposiciona as palavras designativas de cidade ou lugar: “em São Vicente”, ou “em São Paulo”, mas juntam o artigo, em geral, e inesperadamente, o masculino: “no Sahy”, “no Toc-Toc”, “no Paúba”. Assim, a esta paradisíaca paisagem referem-se, não usando só a preposição: “lá em Pau Doce”, mas com o indefectível artigo masculino: “lá no Pau Doce”. Porém, como demonstração (com direito a prova e contraprova) do amplo e alargado espírito aberto da gente paudocista, ao contrário do que acabo de afirmar, conforme o jeitão da frase (isto é que é pensamento científico, o resto é conversa mole), não se usa o artigo, qualquer artigo, masculino ou feminino, só a preposição “em”. Aproveito para elucidar ao desinformado e desimaginativo leitor que, quanto ao gênero, Pau Doce é escandalosamente bissexual, podendo tanto ser chamado de “a Pau Doce” como ser designada como “o Pau Doce”. Dependendo da preferência do freguês ou da opção da freguesa. Depois de tão imprescindível explicação filolinguísticalhorda, é preciso salientar que quando disse acima que “elas ficam sentadas no Pau Doce o dia inteiro”, quis me referir à areia da praia, já que à noite elas sentam em outro Pau Doce, que é o dos barzinhos, calçadas e botequins. Mas, enquanto há sol, o palco é a praia. Praia... Aquele que nunca teve a ventura de conhecer o Pau Doce (nunca é tarde), ou porque trabalha o tempo todo ou porque ainda é casado (situações, aliás, redundantes), não imagina ser esta, geograficamente uma praia diferente. Ela é quase fechada, como uma lagoa ligada ao mar por uma pequena saída. Aquilo que os especialistas chamam de “saco”. Nos mapas náuticos que detalham a costa brasileira está assinalado: “Saco do Pau Doce”. Há, inclusive, aqui um famoso campeonato de natação: “Travessia do Saco do Pau Doce”, neste ano vencido pela nadadora local Gina Silva, a”Diva”. No dia em que cheguei, ainda havia faixas saudando a campeã: “Viva Gina do Pau Doce” e “Grande Festa para a nossa Diva Gina, no Pau Doce”. Quando li as faixas, sem saber do que se tratava, entendi que, finalmente, havia encontrado o meu lugar. Definitivo!

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