domingo, 27 de fevereiro de 2011

57 Queridos hermanos de Tiento Dulce

Esta semana foi aberta mais uma casa noturna aqui em Pau Doce (casa noturna, evidentemente, é um pleonasmo, já que aqui todas as casas são noturnas). O maior estardalhaço, o maior buchicho, o maior perepepê. Situada num centro de excelência do prazer (outro pleonasmo paudocense) no famoso beco que leva o nome do grande navegador espanhol – que ficou muito mais famoso por suas estratégicas, constantes e desesperadas retiradas (fugas, na verdade) do que por suas incursões, empreendimentos ou ataques – Juan Albendía Réia, el Cagon. O novo local define-se pelo próprio nome “Tango no Réia”. Uma casa para cultuar-se a eterna música portenha. O tango imortal. O tango, que segundo Leopoldo Lugones é um “réptil de lupanar” e que para Enrique Santos Discépolo é “um sentimento triste que se dança”. Agora, em Pau Doce, neste calor que, às vezes, derrete até os postes, poderemos, todas as noites, dançar um triste sentimento e, ao mesmo tempo, saudar cavalheirescamente: “Olá Réptil de Lupanar!” O Tango no Réia é uma casa especial! Verdadeira: com suas dezenas de falsas prostitutas (umas verdadeiras putas), que cobram, pela tabela, 2 reais por programa, já incluído nele 10 tangos bailados. Há falsos “compadritos” com suas absurdas costeletas, seus terninhos justos e chapéu milongueiro. Ah! Não esquecer as navalhas. Todos portam sevilhanas ostensivas (falsas, naturalmente). Há uma maravilhosa orquestra falsa, com 21 excelentes falsos músicos. Sem falar no sexteto de cantores (3 homens e 3 mulheres, todos falsíssimos). Enfim, uma verdadeira casa de tangos, onde tudo deve ser falso. A decoração, extraordinária, tem seu principal destaque nos belos quadros a óleo, retratando o universo tangueiro. Uma certa atemporalidade presidiu a escolha dos retratados: ícones do inicio do tango, como Gardel e Le Pera convivem com nomes um pouco mais novos como Julio Sosa e Piazzolla, havendo espaço para ídolos externos à rubrica musical como é o caso do enorme quadro que tenta reproduzir parte da antiga obesidade maradonística. A noite de inauguração foi apoteótica (ainda que, ao amanhecer do dia seguinte, uns afirmassem que fora apetoética, outros discordavam definindo-a como apateótica e, outros ainda, ipotaítica e opeotática. Foi apoteose para todos os fogos). Pau Doce inteiro foi vestido a caráter: toda mulher era uma autêntica prostituta e toda prostituta uma autêntica mulher. Os homens, sem exceção, eram cafajestes despudorados. Ou seja, Pau Doce continuou como sempre foi e, se Deus quiser, como sempre será. A música oficial, claro, era o tango, só o tango e apenas o tango. Espanhol, o idioma. Faixas com frases de confraternização e amizade, todas em espanhol, foram estendidas e amarradas por todo lado. Algumas diziam: “Todo brasileño es puto y maricón”; “Um batido de dos brasileños en una licuadora resulta en un lindo jugo de mierda", "Los próceres de Brasil son gorilas anencefalicos”; “Lula es trolo”; La mas cara mujer de Brasil la pagamos con veinte pesos”; “El mejor producto brasileño es el analfabeto”; “Pelé es monaguillo, Maradona Diós”. Lindas, enormes, coloridas. Todos acharam as faixas maravilhosas apesar da maioria não entender as mensagens de amor e congraçamento nelas escritas por não conhecer o idioma de nossos queridos irmãos. Por causa dessa solidariedade toda, muitos resolveram fantasiar-se para retribuir ao carinho dos visitantes: Piroco, o Vesguinho, vestiu-se de Kirshiner. Bacuri, the stupid, criou um Perón perfeito. Secundão, o Beso (não confundir com El Beso), 210 quilos, Rei Momo vitalício, não podia ser outro que não Maradona. Sandro, o Gilete, foi de Gardel. E tivemos ainda Evita, Lopes Rega, Duhalde, Isabelita, Menen, Fangio, Mario Kemps, Mercedes Sosa e mais, aproximadamente, 73 personagens platinos fidedignamente reproduzidos. O maior problema da noite, totalmente inesperado, foi causado pela vinda, ao Tango no Réia, de muitos desses personagens, os autênticos. Foi uma total confusão. Com exceção dos já falecidos e dos ausentes, não havia como distinguir, nas duplas presentes, quem era o verdadeiro e quem era a imitação. A comitiva do presidente argentino, depois de meia-hora de festa, já não sabia mais a quem custodiar. Os acessores e seguranças, para evitar com segurança os acessores assediadores, decidiram dividir-se, por via das dúvidas, em duas sub-comitivas. Uma ficava de olho no gato e a outra na sardinha. Exatamente como Kirshiner. (Crestina ainda nãoi havia assumido). Com Maradona ocorreu o seguinte: quando Diego deu de cara com o Segundão, ficou possesso. Era como se estivesse olhando para um espelho, sem espelho. Tudo igual. Os mesmos 210 quilos, a mesma camisa 10, o mesmo boné para trás, a mesma expressão arrogante, a mesma barriga panorâmica. Resolveu partir pra briga. Ao agarrar o clone, deu-se conta da burrice que havia cometido. Não havia mais como saber quem era ele e quem era o falso. Um gritava que ele era ele e o outro dizia que não, que quem era ele era ele. Falava, um, dos times nos quais jogou, dos gols que fez, dos campeonatos que ganhou, dos amigos que comeu, das mulheres que conquistou. Tudo em vão, já que o outro repetia o mesmo currículo e com mais detalhes. Já estavam, os 420 quilos, completamente exauridos, quando um dos amigos do verdadeiro, propôs uma prova irrefutável, uma façanha que só o autêntico Maradona poderia realizar. Colocariam 2 carreiras de pó, paralelas, de uns 200 metros cada uma, perfazendo todo o percurso, do início do Beco J. A. Réia terminando dentro da casa de tangos. A um sinal, os dois começariam a cheirar. No mundo, só Maradona conseguiria detonar essa quantidade. Aquele que conseguisse chegar ao fim provaria ser o verdadeiro e o que caísse desmaiado, em coma ou morto seria o impostor. Aprovada a proposta, estocada a maldita (levou quase 15 minutos para se conseguir juntar tantos e tantos quilos), esticadas as carreiras, foi preciso postergar o início da disputa por duas horas, dada a quantidade de apostadores que começou a surgir de todos os lados, assim que a notícia se espalhou. Os dois tiveram que ser identificados com os números 1 e 2 para viabilizar as apostas. Foi quase impossível contê-los, tão desesperados ficaram quando viram todo aquele pó à disposição. Dado o sinal de largada, os dois passaram a aspirar e fungar furiosamente. O público delirava só com as emanações. Mais de mil espectadores gritavam incentivando o seu preferido. Vinte minutos depois, surpresa total: os dois chegaram empatados. Haviam consumido, cada um, 10 quilos da pura e ainda queriam mais. Os amigos e organizadores se deram por vencidos. No dia seguinte, a saída foi tirar a sorte. O vencedor voltou para Buenos Aires. Nós estamos desconfiados que o Segundão foi embora e vamos ter que aguentar um Rei Momo que só fala espanhol. Carajo!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

56 Com plexo de Édipo

Querida mamãe, estou escrevendo pra você porque estou muito carente. Você sabe que esse meu sentimento não é nenhuma novidade. Nem nunca foi. Você me dizia que desde que engravidou, passou a sentir que uma força interna a sugava avassaladora e completamente. Essa sucção constante durou os nove meses. Depois do parto, muito aliviada, você percebeu que o sugador era aquela coisinha pequena, quase só uma enorme boca chorante. Quanto mais eu chorava, mais você sumia. Contratou babá, aia, mucama, enfermeira e mais uma trempa de auxiliares e substitutas. Contaram-me que você nunca me pegou no colo, o que você sempre negou, já que uma vez por ano, no dia do meu aniversário, você me segurava para tirar a foto oficial. Você sempre me disse que não me pegava no colo, no dia a dia, porque seu bruxo particular dizia que essa proximidade excessiva iria me dar azar. Isso se repetiu até que eu fizesse quatro anos. Foi uma época maravilhosa, pois, de vez em quando, eu podia ver você. Depois do meu quarto aniversário, você sumiu por completo. (Assim uma das mucamas-de-leite me contou mais tarde, 12 anos depois, quando você a demitiu por justa causa alegando que eu ainda necessitava de leite do peito e que o dela já secara (apesar de eu ainda continuar mamando nela). Estava muito despeitada (não é trocadilho, mamãe) e passou a falar mal de você pra mim. Claro que eu não acreditei em nada do que ela me falou). Bom, você sumiu, mas não sumiu, claro. Mantinha-se sempre em contato, pagando as despesas através da babá-presidente e provia tudo o que eu necessitava. Não sei porque eu, ainda, continuava carente. Mas, o fato é que eu continuava. E como! Os seus presentes foram sempre maravilhosos, caros, exclusivos e eu ficava imaginando você os escolhendo e comprando-os para mim em Paris, em Roma, em Nova York. A mucama me disse, durante o processo, que não era você que os comprava. Que você havia contratado uma empresa especializada em comprar presentes para filhos carentes de mães ausentes. É claro que não acreditei nela de novo. Uma linguaruda e mentirosa! Ela, para tentar me convencer e me envenenar contra você, me disse: “Você não lembra que quando fez cinco anos ela mandou um computadorzinho de bolso, aos sete anos, uma bola quadrada para bebê, que aos dez anos ela enviou uma enorme e rica coleção de livros só com desenhos e gravuras, sem nenhuma legenda e aos catorze, um guarda-roupa completo, (incluindo sapatos de salto e bujuterias) para você usar em seu baile de debutante, no ano seguinte; o vestido da noite principal era um luxo! Depois, alguém deve ter percebido o fora e, aí trocaram tudo isso por uma pistola automática calibre 12, uma moto tipo Vespa e uma passagem para a Disney. Lembra ou não lembra? Você tem todas as fotos”. Mamãe, tenho absoluta certeza de que você tem uma explicação para todos esses presentes, só não teve tempo de me contar. Quando fiz dezesseis anos, você reapareceu. Linda e deslumbrante. Já havia se casado 23 vezes e estava, momentaneamente, desocupada. Foi aí que você conheceu a Teus. E converteu-se a ele. Lembro-me, como se fosse hoje, que você me dizia, extasiada: “Teus é soberano! Teus é justo! Teus é verdadeiro! Teus é todo poderoso! Teus é fiel.” Que beleza! Eu ficava maravilhado vendo até onde chegava sua adoração por ele. Claro que eu ficava feliz, mas, no fundo, no fundo, minha carência aumentava e aumentava e aumentava. Sua primeira relação com Teus durou pouco, coisa de duas semanas. Aí você desapareceu outra vez, apaixonada, agora, por um palhaço de circo. Excursionou com o circo por um ano e meio, mundo afora. Quando fiz dezoito, a meu pedido (não foi fácil localizar o circo, que, àquela altura, estava em Pequim) você mandou um telegrama a Teus e graças a ele me livrei do Exército; apesar do seu rompimento, ele nunca virou as costas para você. Teus nunca vira as costas pra ninguém. A cada dia que passava, eu sentia mais a sua falta. Depois de se cansar das viagens e das palhaçadas, você voltou e Teus convenceu-a a ficar em São Paulo, por um tempo. Durante os três anos seguintes, foi ótimo, pois nós almoçamos juntos quatro vezes. Pena que sempre com tanta gente junto e com a maioria disputando sua atenção. Quando completei vinte um anos, você me deu dois carros de uma vez. Lindos! Chiquérrimos! Mas, eu já possuía a Mercedinha dos dezoito anos e a Masseratti dos dezenove. Sinceramente, mamãe? Eu nunca usava nenhum dos quatro. O que eu mais gostava era sair de bicicleta. Aquele vento no rosto, quando eu descia a Ladeira Porto Geral sem breque, dava-me uma sensação de aconchego e segurança enormes. Passava, depois, dois ou três dias (ou meses) internado e comprava uma bicicleta nova. Foi assim que fraturei 13 vezes o fêmur direito, (o esquerdo, por incrível que pareça, só duas), a bacia, 23 vezes, os braços, ambos, perdi a conta depois da 41ª vez. Dos 17 traumatismos cranianos, só 5 ou 6 foram, de fato, muito graves, com direito a coma e longa convalescença. Porém, o último foi pra valer: 6 meses desacordado, com sonda pra tudo que é lado. Quando despertei, estava tudo mudado. Sentia-me outro: sério, amadurecido e muito menos carente. Tomei decisões importantíssimas, como banir para sempre a idéia de trabalho (abrindo uma exceção para o emprego, nunca para o trabalho; por isso Teus me empregou), trocar o dia pela noite, como deveria ter feito desde que nasci. Descobri, também, que o sangue humano precisa de quantidades crescentes diárias de álcool, para atingir seu estado ideal e provocar, conseqüentemente, longevidade. Resolvi vir passar as férias em Pau Doce. Aqui, mamãe, encontrei a sociedade ideal e o ideal tipo de vida. Tudo com o qual eu havia passado a sonhar depois do ultimo coma. Durante aqueles anos nos quais fiquei conhecido como o “louco da Porto Geral” (não entendo porque os jornais e as TVs me apelidaram assim) você, graças a Teus, nunca soube de meu vício desesperado, nem das suas conseqüentes fraturas, internações e comas. Mamãe, nunca duvidei de seu amor e de sua extrema dedicação a mim, principalmente depois que me tornei morador permanente de Pau Doce. Preocupei-me, um pouco, confesso, com aquele seu casamento com o Jardim Ângela Futebol Clube. Fiquei imaginando o dia da cerimônia religiosa (sei que foi naquela igreja que os padres fazem o seminário por correspondência e aos quais é permitido sexo virtual e voyeurismo), como você fez? Entrou de braço com os 17, ao som da marcha nupcial? Ou entrou 17 vezes seguidas? Ou com um representante escolhido democraticamente pelos demais? Ou com o Diretor Técnico, por exigência do estatuto da equipe? Não importa, esse casamento já chegou ao fim, você se livrou de 17 sogras, e eu continuo aquele adolescente que te adora, que te ama e que te venera. Mamãe, me promete que você virá a Pau Doce para a festa de meu aniversário de 45 anos?

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

55 “Mater tua mala burra est” (Tua mãe come maçãs maduras)

Finalmente, mamãe escreveu. Não tinha notícias dela há mais de dois anos. Sabia que nada de mal havia ocorrido, primeiro porque é próprio dela passar longas temporadas sem dar sinal de vida, depois, e mais importante, porque os depósitos em minha conta bancária continuaram a ser feitos, mês a mês, religiosamente, com a pontualidade de sempre. Por mais que eu saiba que a grana é remetida pela graça de Teus, se algo de anormal tivesse acontecido, ele teria enviado seus mensageiros para me informar e levar-me à sua divina presença. As novidades de mamãe chegaram por via postal. Uma longa carta, escrita com sua letra firme e arredondada. Contou-me, em linhas gerais, tudo o que ocorreu desde o fim de sua relação com o time do Jardim Ângela Futebol Clube. Chegou, ainda a relembrar alguns lances desse relacionamento tão ímpar, quanto complicado. Também, não era para menos. Não é todo dia que uma mulher se casa com 17 homens ao mesmo tempo. Biandria, triandria, até o limite da pentoandria são, digamos, quase normais nos dias de hoje. Mas, uma poliandria de quase duas dezenas é inusitabilidade pra ninguém botar defeito. Mamãe disse que os últimos dias da relação foram muito conturbados, que o Jardim Ângela (todos os 17) parecia desinteressado, só preocupado consigo mesmo, alegando os incômodos comuns a uma fase de desencanto – dor de cabeça, cansaço, sono constante – já não faziam sexo há vários dias e quando pintava um conluio carnal notava-o distante e automático. Mamãe estava começando a desconfiar daquilo que eu lhe havia alertado: o Jardim Ângela só estava interessado em seu dinheiro. Claro, para um time de futebol do bairro mais miserável de São Paulo, louco pra crescer, ascender, ganhar visibilidade e, como conseqüência, muito dinheiro, mamãe era o ideal. Mulher de meia-idade, muito rica, de uma fogosidade incontrolável, apaixonada e cega, como todas as apaixonadas. Era a escada certa para o sucesso. Escada não, elevador. Só que a equipe – formada por jogadores muito jovens e inexperientes, que se consideravam tão atletas sexuais quanto futebolísticos – não contava com o furor ovariano, com a insaciabilidade de uma mulher que, a primeira vista, parecia sexualmente normal. Parecia, mas não era! Findo o relacionamento, ela, como sempre, como que por imposição de uma lei inexorável, voltou para Teus. Repetiu-se o movimento de sempre. Acabado um interlúdio amoroso, como esposa-pródiga, ela se volta para Teus. Ele, na sua infinita sabedoria, a aceita sempre, como se ela não o tivesse deixado nunca. De volta a São Paulo, para não ficar sem fazer nada, ela resolveu montar uma loja de alto luxo (deve ser a décima nos últimos cinco anos). Da mesma maneira como procede com seus homens, com as lojas ela também tem uma relação inicial de dedicação quase fanática, passa depois para uma de normalidade, para desembocar numa verdadeira aversão. Aí, livra-se dela (ou deles) e parte para outra. Desta vez, com um investimento de 10 milhões de dólares (financiados por Teus) ela abriu uma sofisticada butique especializada em cílios postiços. Só cílios e nada mais do que cílios. Seu interesse pela pilagem ocular logo se desvaneceu, e ela fechou a loja. Nem se deu ao trabalho de vendê-la ou de proceder seu encerramento legal. Fechou as portas com tudo dentro e se mandou. Na seqüência, deixou, novamente, o Brasil e foi para Zurique fazer um curso de árbitra em luta greco-romana (sempre foi fissurada em lutadores dessa modalidade). Fez sucesso entre os descomunais atletas. Morou um tempo com o campeão búlgaro. Alguns meses depois, estava com o do Azerbaidjão. Trocou, de novo, então pelo da Irlanda do Norte. Passou a limpo, ainda, o russo, o do Curdistão e o espanhol. Açambarcou, também, campeões de outros continentes: de Uganda, da Malásia, do Afeganistão, do Burundi, da Austrália, da Bolívia, da Nicarágua e, por fim, o do Canadá. Desiludiu-se, definitivamente, dos lutadores greco-romanos, quando constatou que eles tinham, todos, músculos no lugar de cérebro. Aproveitando o fato de já estar na Europa, acabou aceitando um antigo e insistente convite da Rainha Elisabeth 2ª, que sempre rejeitara, (o convite, não a Rainha) e ficou morando no Palácio de Buckinhan. Temporada difícil e constrangedora, já que a Família Real passava os dias – todos – na total inércia contemplativa. Um absoluto não-fazer. Nem um joguinho de dominó, nem um carteadozinho, nem sequer uma tevezinha. Era só tomar chá e folhear álbuns de fotos da própria família. Marasmo total e absoluto. A Rainha-Mãe, com essa agitação toda, morreu com mais de 100 anos. A Elisabeth já está no trono há mais de 50. Provavelmente, viverá até os 200. Não fosse por alguns serviçais e camareiros jovens e vigorosos, ela teria ficado lá não mais do que um mês. Com essa compensação, ficou quatro. O único problema era ter que dividir os valetes com os homens da familiaridade real. No ano passado, mamãe voltou ao Brasil. Refugiou-se, outra vez, na onipotência de Teus. Como Teus tem o mundo inteiro para cuidar, tendo negócios nos 5 continentes, ela sempre demora um pouco para ficar de saco cheio dele. Outra vez em Sampa, passou a dedicar-se à política. Não à política propriamente dita, mas à política de aproximação com os políticos. Começou por dar umas saidinhas com a Morta Suplicynha – chás, vernissages, badalações – com direito a algumas trepadinhas com o guarda-costas franco-argentino (nas costas da Morta, claro). Freqüentou o sítio e o apartamento de NHC, dando um trabalho danado para as noras de Nanando. Terminado esse surto pluripartidário, ela resolveu que estava mais do que na hora de viver uma paixão arrebatadora. Queria, porém, algo diferente, novo, inusitado, que mexesse com sua estrutura e que a arrancasse daquele marasmo existencial. Assim, sua meticulosa escolha, dirigida por seu imbatível faro para tudo o que a fizesse viver perigosamente, recaiu na pessoa do renomado cirurgião plástico Dr. Ivo Pitanguinha. Pitanguinha é caso ímpar na sua especialidade, não exatamente por sua habilidade técnica, mas por ser o único, no mundo, a exercer reformas delicadíssimas na epiderme e na estrutura das pessoas, máxime nas mulheres, sendo totalmente cego. Mamãe acompanhou-o em suas grandes cirurgias (fez, rapidinho, um curso de férias de instrumentação cirúrgica) como sua instrumentadora. Hábil como ela é, conseguiu evitar alguns desastres estéticos como trocar os dois olhos de lugar (o direito no lugar do esquerdo e o esquerdo no do direito), a substituição de um mamilo, demasiadamente pequeno, por um clitóris, a ausência das narinas num nariz novinho em folha, o desbalanceamento de silicone nos dois seios de uma paciente (5 quilos em um e 1 e meio no outro), a circuncisão no pênis de um xeique árabe, uma lipoaspiração numa panturrilha direita. Acabou voltando para Teus quando, numa noite de amor desvairado, Pitanguinho, excitadíssimo, cego de tesão, por pouco não a submeteu (na verdade, supermeteu) a uma extirpação de mama bucal, conhecida no jargão técnico como uma “buco-mastectomia-carnal”. Salvou-a um brusco contra-ataque conhecido como “genu-aniquilo-escrotal”. Neste momento (momento em que ela postou a carta) ela continuava no regaço de Teus. Por quanto tempo? Isso nem Teus sabe!

sábado, 12 de fevereiro de 2011

54 A Casa das Santas Marafonas Reais

Para orgulho de Pau Doce, uma espetacular descoberta efetuada por nosso incansável e competentíssimo InstiTUTO Histérico e PORNOgráfico (TUTOPORNO) foi manchete em todos os grandes jornais brasileiros, com intensa repercussão no mundo universitário internacional. Depois de exaustivíssimas pesquisas, que incluíram, não apenas investigações na Torre do Tombo, em Portugal, mas inúmeras escavações arqueológicas endógenas (explicando para o ignaro e estéril leitor – ou seja, para todo leitor, ou quase todo – o termo “endógenas” refere-se às perquerições teoréticas e procedimentos interventivos do espaço físico, operacionalizados no âmbito mesmo da estrutura urbanística paudocense. Morou?) foi constatado que nos idos de mil oitocentos e quase nada, o prevaricador imperial D. Pedro I, o Ejaculador, utilizou a praia de Pau Doce como centro de sua Cruzada Humanística Pró Inseminação Natural e Pela Desmistificação das Crenças Retrógradas e Supersticiosas na Periculosidade das Manifestações Concretas da Bondade Divina: a Sífilis, a Gonorréia, o Cancro Mole e o Duro e o Furor Uterino Descontrolado (Uma ONG oitocentista). D. Pedro, segundo as revolucionárias pesquisas citadas, mandou construir um luxuoso palácio, com aproximadamente 400 quartos, todos utilizados por ele em suas rápidas fugidinhas do Rio de Janeiro. Esse majestoso palácio encontra-se hoje, deploravelmente, em ruínas e é chamado de PPI (Palácio da Phoda Imperial) pela população mais humilde (designação que, apesar de muito antiga, sempre foi considerada desarrazoada e sem sentido pela cultura oficial). O memorável e revolucionário trabalho do TUTOPORNO acabou dando razão a esse “non-sense” popular. A pesquisa redundou num pequeno e singelo texto de 43 718 páginas que narra as apimentadas peripécias do membro imperial em Pau Doce. O Ejaculador, ou Pedrito, como era chamado à boca pequena, mandou construir o palácio sorrateiramente, à socapa, sem que a velha corte soubesse de nada, menos ainda a “corte velha” como era chamada a sábia rainha D. Maria Leopoldina, a Plugada, sua santíssima esposa, que ficava com os pelos do imenso bigode eriçadíssimos quando desconfiava de alguma patranha extra-oficial do consorte. Com sorte, ele podia ostentar as patranhas oficiais, sem que a matrona do trono se sentisse destronada. Todas as patranhas oficiais eram executadas no Rio e alrededores, tanto as humano-relacionais (coitos variados) como as burocrático-administrativas. As primeiras, devidamente registradas em cartório, superavam a meia centena. Só de Marias, dizia-se ser doze o total oficial (Maria da Caridade, Maria Pureza, Maria Castiça, Maria dos Anjos, Maria Imaculada, Maria do Senhor, Maria Divina, Maria do Amor Celeste, Maria de Jesus, Maria da Graça, Maria do Santo Sepulcro e sua preferida Mariazinha Fuqui-Fuqui). Quanto às burocráticas, eram patranhas pra ninguém botar defeito: a maioria com apenas um objetivo – grana: superfaturamento, arrendamento de cartórios, aluguel de ruas para camelôs, superfaturamento, venda de títulos de nobreza falsos (caríssimos), empréstimo de praças públicas para muambeiros, superfaturamento, lavagem de dinheiro, lavagem de cheques, branqueamento de negritudes, superfaturamento, aluguel de avenidas para sacoleiros, pedágios informais, propinas, participações e superfaturamento. Foi através de verbas originarias dessas chicanas imperiais que o Palácio de Pau Doce foi construído. Sua localização fora escolhida científicamente (há no texto um capitulo inteiro sobre essa meticulosa decisão) depois de acurados estudos efetuados por empresas inglesas especializadas em espionagens, engenharias e sacanagens. Tudo à sorrelfa, evidentemente. E a região eleita só poderia ter sido a que foi, Pau Doce: por sua deslumbrante beleza natural, pela índole permissivíssima de sua gente, pelo clima erótico-libidinoso, por ser absolutamente escondida e inencontrável e, acima de tudo, pela acessibilidade proverbial de suas mulheres. A construção foi uma epopéia da engenharia histórica: todo material vindo da Europa chegava em portentosos navios a vela que formavam verdadeiras ponte-marítimas: Lisboa-Pau Doce, Veneza-Pau Doce, Nápoles-Pau Doce, Liverpool-Pau Doce. A mão-de-obra técnica era também européia e para as peônicas funções Pedrito aproveitou os funcionários da corte carioca. Para que a Rainha não desconfiasse de nada, a estratégia foi fazer de conta que o governo dera férias coletivas à malungada. Durante os 13 meses que durou a construção, não se achava viva alma em nenhum dos palácios reais. À Rainha, quando reclamava da ausência dos serviçais (cozinheiros, mucamos, garçons, cavalariços, valetes, ofice-gajos, mancebos-livres, alfaiates, escovadores de costas, transportadores de urinóis, despiolhadores e despulgadores) ele explicava que estavam gozando férias atrasadas e que não poderia não concedê-las para não se complicar com os fiscais do IIPS (Instituto Imperial de Previdência Social). E a Rainha acreditava!!! Vivíssima essa Rainha! Não chegou a ser nenhuma surpresa para os membros da TUTOPORNO a revelação de que a principal visitadora do palácio tenha sido a Marquesa de Santos. Maria Domitila deixou suas marcas históricas espalhadas pelo imperial matadouro, o que denota sua assiduidade como hóspede de Pau Doce. Mas, não foi a única, nem de longe. A lista das parceiras do Ejaculador é longa e não imune de omissões. Algumas das ludoteraputas, não, ludoterapeutas reais que dela constam são: a Marquesa de São Vicente. D. Avenca do Torreão, a Calunga, a Duquesa do Guarujá, D. Ermengarda Mengarda Garda, a Tartamuda, a Baronesa de Cubatão, D. Estulta de Souza, a Ex-belta, a Arquiduquesa de Praia Grande, D. Piranha Loirão, a Casta, a Marquesa de Bertioga, D. Clivagem da Rosca, a Apertada, a Semi-Baronesa de Mongaguá, D. Bestunta de Almeida, a Fria, a Bi-Duquesa de Teresina, D. Piauina Modesta, a Longínqua, a Pró-Marquesa de Itanhaén, D. Lambisgóia Catão, a Lambisgóia, a Liberta Chiquinha, a Bunduda, a Mucama Bimbinha, a Insaciável, e a Escrava Guta, a Negra. A lista prossegue e é enorme. Com a volta de D. Pedro a Portugal e a tenra idade do Príncipe Herdeiro, o palácio foi desativado. O segundo dos Pedros, lamentavelmente, estava mais preocupado com o governo e com a ciência, do que com as coisas importantes da vida, como a sacanagem, sem nunca ter atentado que os dois primeiros existem em todo lado, mas a putaria é autêntico produto nosso. Seu desinteresse pela vida plena de prazeres levou-o a engordar e a viver muito (o que é uma rematada idiotice). Enquanto o Gordo governava, o PPI transformou-se (sem o conhecimento imperial) num respeitável prostíbulo, freqüentado pelas autoridades civis, eclesiásticas e militares, tudo com muito recato, seguindo o lema da casa: “putaria sim, baixaria nunca!”. Com o passar dos anos e com o inexorável envelhecimento do plantel, o palácio das atrizes tornou-se o reduto das varizes, a casa das crisálidas, converteu-se em asilo das inválidas. Com o falecimento da última das missionárias do sexo, o edifício, vazio, foi se deteriorando até chegar às ruínas atuais. Ainda bem que a fase do primeiro Pedro durou pouco, ou Pau Doce não teria esse nome especial que tem hoje, sendo chamada, para sempre, como o foi nessa época: Prevaricópolis ou Ejaculândia. Eu, hein?

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

53 Encontro Esferogudístico

Noite destas, estávamos sorvendo regularmente, não me lembro se no Licor no Manso ou no Drinks aos Tubos, quando surgiu, como que do nada, como que tendo brotado das paredes do boteco, a retumbante idéia da realização de um torneio de bolinha-de-gude. Por mais que torneios, campeonatos e competições, de qualquer espécie, sejam quase proscritos em Pau Doce, a menção às bolinhas da nossa infância, o som sagrado delas batendo-se umas às outras, falaram mais alto. Qualquer outra proposta competitiva teria sido recebida, primeiro com um silêncio de perplexidade, depois com uma vaia estrepitosa, para culminar com a expulsão do delituoso, não só bar, mas da vida social paudocense. Exílio, no mínimo. Mas, a magia das bolinhas-de-gude relativizou a primeira parte da proposta, que foi tomada como simples força de expressão. Abandonada a idéia, o “torneio” caminhou para um “encontro de aficionados”. Ali mesmo, em minutos, lépidos como sempre, montamos a COMEVENTO - COMissão Organizadora do EVENTO. A tarefa foi fácil (montar a comissão, evidentemente), pois todas as comissões, sejam elas organizadoras ou desorganizadoras, do que quer que seja, têm sempre a mesma formação: a já famosa meia-dúzia de três ou quatro. Para que a idéia não perdesse a força do entusiasmo, marcamos, de pronto, uma reunião pra discutirmos sobre quando deveríamos nos encontrar para optarmos a cerca da data da elaboração de um cronograma que possibilitasse uma decisão, ainda que provisória, sobre a viabilidade, ou não, de concentrarmos nossos esforços no sentido de nos encaminharmos para a oportunização de uma etapa preparatória de esboço temporal, porém que não fosse, de forma alguma, confundida com precipitação ou açodamento, que em Pau Doce gostamos de tudo muito tranquilinho. Ao lado dos verbos vitais do paudocês (não confundir com “pênis alheio”. Paudocês é o nosso idioma oficial): dormir, serenatear, zanzar, botecar, gerar (só a primeira fase), dançar, escamotear, aperetivar, anoitar, puxorroncar, chamajucar, dormitar, abeberar, serenar, adormecer, caipirinhar, copular, bebericar, entornar, pirulitar, divagar (sem contar com muitos outros, até mesmo das 4ª e 5ª conjugações, aqui ausentes), ao lado de todos estes verbos – repito - procrastinar, para nós é de uma essencialidade extrema. Um dos nossos lemas mais queridos é aquele criado pelo célebre escritor romano Postergus, o Lento: “Nunca faças hoje, o que puderes deixar para amanhã” (Non facit hodie, quod futurum executant). Seis meses depois daquela “Noite destas”, o desenho inicial da proposta de agenda com vistas ao Encontro Esferogudístico estava pronto. Rapidamente, chegamos (após apenas 3 anos do desenho da agenda) a um rascunho prévio do evento. Decidimos, primeiro, as modalidades de demonstração. A primeira delas consistirá no delicioso Triângulo Trilateral. Cada demonstrante (não há jogadores, é claro) com sua batedeira de estimação - em geral uma bolinha maior do que as outras e esteticamente especial – atua em função do centro da ação que é um triângulo riscado no chão. Os participantes casam (colocam dentro do triângulo) o mesmo número de bolinhas. A partir de uma base riscada a uns três metros do triângulo, cada um deles lança sua batedeira em direção a ele. Aquele que mais perto do triângulo conseguir chegar será o primeiro a agir. Deve, então, com o polegar, catapultar a batedeira presa no indicador. O objetivo é bater, com força e técnica, nas bolinhas e retirá-las do triângulo sem deixar a batedeira ficar dentro dele. Enquanto o participante conseguir ir tirando as bolinhas, continuará atuando. Ao errar, a vez passa ao segundo, ao terceiro e assim por diante. A demonstração termina quando não houver mais bolinhas no interior do triângulo. As regras são estritas e o jargão tradicional deve ser respeitado:
1- “Mão expulsa”: impulsionar a mão ao atirar a batedeira, o que não é permitido.
2- “Galisteca”: grito a ser emitido pelo lançador, para que a sua batedeira tenha o direito de bater em várias bolinhas no interior do triângulo.
3- “Nem gali, nem galisteca”: grito que, emitido por um dos demonstrantes, que não esteja atuando, anula o grito de “Galisteca” do lançador, sempre e quando anteceder a este, o que veda a possibilidade da batedeira tocar em mais de uma bolinha de cada vez.
A outra modalidade de demonstração será a do “Box”. Esta, porém, por ter regras mais complicadas, não será aqui descrita. A forma de atuar estará, na íntegra, descrita no folder oficial do Encontro. Resolvemos que a efeméride esferogudística será de nível internacional (Pau Doce não poderia deixar por menos). Convites, para participantes de todos os estados brasileiros e para os principais paises do mundo, serão enviados com uma antecedência não inferior a cinco anos, para proporcionar, aos interessados, tempo para a criação das suas associações, preparação esportiva e burocrática de suas delegações e colocação em marcha da cadeia produtiva das bolinhas, ainda a ser criada. Soubemos já do interesse de alguns mandatários e integrantes do Jet-set em participar do Encontro. Barack Obama confirmou presença. Também disputam essa possibilidade: Nelson Mandela, Rainha Elizabeth 2ª, Papa Bento Dezesseis, Fidel Castro, Dalai Lama, Madonna, Osama Bin Laden Jr. (suspeito esse Jr!), Ladran Hussein (tio-avô do Sadan Hussein), as, ainda, belas anciãs Cicciolina, Hebe Camargo e o esbelto Oscar Niemeyer. Silvio Berlusconi, inicialmente, implorou para participar, depois tentou a intimidação através de grupos guerrilheiros, mas a COMEVENTO foi inflexível na não aceitação de sua inscrição e na não concessão de visto de entrada em Pau Doce. O motivo alegado foi que ele nunca abre mão de atuar com sua batedeira de estimação, que é de metal e não de vidro, o que é terminantemente proibido pelas regras. Outros vetos significativos foram aos nomes de Fernando Collor de Mello, Fernandinho Beira-Mar, Paulo Maluf, Waldomiro Diniz e Edir Macedo. Em relação a estes, o motivo foi birra, mesmo. Nem gali, nem galisteca!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

52 A performance do Pantero Cor-de-Rosa

“Reflexões sobre a irreflexão”, este foi o tema central do ENFIOPAUENcontro FIlosófico Onanístico de PAU Doce. A importância do evento, no popularíssimo mundo da filosofia, foi tal que chegou a circular, em regiões e cidades nossas concorrentes (movidas, certamente, por despeito de nosso desbunde), um folder apócrifo, em tudo semelhante ao original, com apenas uma singela e criminosa adulteração no título da conferência-mor: “Irreflexões sobre a reflexão”. O orador convidado, Dr. Heitor Romeu Pinto, professor titular da cadeira de Filosofia Aeróbica na Universidade Paris-27 e autor do seller best-célebre “O mundo sem Filosofia? Um horror!!! (com as 3 exclamações, sim senhor) Guia Prático de Filosofia Fashion”, informado do abominável ato terrorista, riu às bandeiras despregadas (?) e vaticinou, com um tom um tanto machista: “Esses tolinhos não sabem que dá tudo na mesma, na mesma tudo dá! Bofes!” Pau Doce engalanou-se para a efeméride (como sempre se engalana) com muito bom gosto. Dentro do espírito do ENFIOPAU, enfeitamos todas as ruas com enormes laços de seda, cheios de missangas e debruns, nos mais variados tons de rosa. Um luxo! Mas, apesar do aspecto alegre e festivo da decoração, o encontro foi de trabalho duro, muito duro. Dr. Heitor, numa voz abaritonada e falso sotaque, levemente francês (um charme), começou por introduzir, muito suavemente (introdução perfeita), o seu escopo (objetivo, por favor) na conferência: faria 53 reflexões distintas sobre a irreflexão. (Nesse momento, nós da Comissão fizemos um rápido cálculo de cabeça: 53 por 15 minutos cada uma = 11 horas e caracacá, mais introdução, conclusão e algumas frescuras das quais ele, certamente, não abriria mão, e teríamos 12 horas de conferência. Olhamo-nos de soslaio, apavorados). Somente depois do cofee-break, segundo disse, aceitaria perguntas. Vou tentar relatar apenas as poucas reflexões que pude ouvir antes de pegar no sono. Infelizmente, não pude dormir como merecia, pois, de quando em quando, um grito de “Lindo!”, dirigido ao Dr. Heitor R. Pinto, me fazia despertar sobressaltado. Não falarei, é claro, da manifestação do público nos primeiros minutos da apresentação, que para o delírio do conferencista gritava: “Introduz Heitor, introduz!”. Contida a ânsia libidinosa da platéia, ele continuou. Sua primeira reflexão foi que reflexões não existem. Disse ele: “Essa pseudoprofundidade de pensar a que todos se referem como refletir, em verdade, é um ato tão natural, automático e involuntário como espirrar, dormir (eu ainda estava acordado) ou depilar o peito. A diferença do simples pensar e do refletir não está, nem na profundidade, nem na complexidade, está na comunicação. Quando fazemos uma rápida introspecção, o que estamos, de fato, produzindo é um complexo movimento de comunicação, do eu para o eu-mesmo, ou do eu-mesmo para o eu. Todos, absolutamente todos, ao pensarmos produzimos reflexões, profundas e complexas, mas, infelizmente (ou felizmente, quem sabe?) não nos damos conta disso. Não alertamos a nós mesmos que estamos refletindo tão refletidamente quanto um dia refletiram Sócrates, Avicena, Kant e a Dona Zica da Mangueira. Ligamos nosso reflexor automático e seguimos em frente, comandados por nossa incomensurável tendência à insignificância. Não confiamos em nós mesmos. Sócrates, por exemplo, que diferença significativa teve sua reflexão comparada com as nossas, comuns mortais? Nenhuma. Ele gostava de pensar. Como nós. Gostava de conversar. Como nós. Gostava de fazer perguntas. Como nós. Gostava de terçar argumentos. Como nós. Gostava da procura da verdade. Como nós. Gostava dos jovens efebos. Como nós podemos ver, não há nenhuma importante diferença entre o seu saber e o nosso. A única diferença é que entre seus preferidos, escolheu um de ombros largos (saradão, como diríamos hoje) que pegou no pensamento de Sócrates, com muito carinho, afagou-o, fez com que ficasse enorme e guardou-o dentro de si. Nos seus livros. Tanto que, até hoje, por mais que se tenha pesquisado, ainda não se sabe onde começa Platão e onde Sócrates acaba. Os efebos da platéia deliravam com a intumescida eleqüência do Dr. Heitor Romeu P.. A seguir, seguiu seguindo a seqüência do seu pensamento. “Refletir não é mais do que projetar em si a imagem que o mundo oferece. É exatamente o papel do espelho. Refletir é sinônimo de especular, palavra que vem do latim “especulum” cuja tradução literal é espelho. O que faz o espelho? Ele nada faz, apenas reflete. Deixa reproduzir em si mesmo, de maneira fidelíssima, o que está à sua frente. Não cabe ao espelho não querer, negar-se a refletir. É da sua essência mesma, ou espelhicidade, a reflexão acrítica e compulsória. Não podemos imaginar um espelho (se a ele déssemos a habilidade do falar) dizendo: “Saia de mim! Não vou refletir você nem que me estilhassem em mil pedacinhos. Horroroso!”Jamais! O espelho reflete e apenas isso, reflete, produz reflexão. O nosso refletir (daí se origina a palavra) é idêntico ao do espelho: reproduzimos as imagens que nosso cérebro capta à sua frente. A única diferença está (de fato, nem diferença é) no conceito de “à frente”. A nossa (frente) não é espacial, como a do espelho. Pode estar à frente do nosso cérebro uma curva do Rio Ganges, ou uma equação do segundo grau, ou uma seqüência melódica atonal, ou o processo de transgenia, ou a Lei de Talião, ou uma sapatilha de ballet maravilhosa! Tudo está à nossa frente, ainda que nada esteja à nossa frente”. Na fileira de traz, um cavalheiro de uns 30 anos, vestindo um Summer branco, bigodes indomáveis, bíceps invulgarmente desenvolvidos, sem conseguir conter-se, exclamava, excitado: “Que homem! Isso é que é homem e não aquele babaca que eu tenho lá em casa!” A esta altura do espetáculo, as poucas mulheres presentes já haviam se retirado. Os rapazes, em número cada vez maior, ululavam em transe. Iniciada a terceira reflexão (depois desta, ainda faltariam 50) eu adormeci, sob o acalanto da voz do Dr. Heitor Romeu Pinto. Depois de 30 ou 40 acordadelas, saltei, na poltrona, assustado e pronto para sair correndo. Então, percebi que a ovação final me despertara. A platéia, em pé, delirante e apoplética, gritava em coro o nome do grande artista:
- “H. Romeu Pinto!”
-“H. Romeu Pinto!”
-“H. Romeu Pinto!”
Saí correndo. Tô fora!