quarta-feira, 15 de setembro de 2010

24 Umaseoutras

Olhando em torno, tudo era paz. A mais absoluta e completa. A brisa sequer soprava suavemente. Era mais um leve lamber, um imperceptível roçar. O mar mais parecia uma pintura que um elemento vivo e presente. A ausência quase total de quaisquer sonoridades, interrompida, em pequenos intervalos, por algo que dava a impressão de água caindo, pequena e pouca, imprimia ao cenário uma dimensão atemporal. As montanhas próximas, sempre de um verde semi-violento, deixavam-se ver esmaecidas; as outras, ao longe, habitualmente azuis, mantinham-se, obstinadamente, azuis. O sol alto, tórrido em dias estivais como aquele, mantinha-se a pino, majestático, mas presença apenas plástica, carente de energia. Um quase imperceptível aroma rosa-almiscarado acariciava os terminais de olfato, que, ato contínuo, produziam agradável umidade gustativa. Achei, por um longo instante, que havia morrido e me encontrava desfrutando do paraíso, curtindo o éden ou fruindo do nirvana. Esperava, já, pela chegada, a qualquer momento, de flanantes querubins, com bandejas de luz transbordantes de maná e néctar, ou entidades soprantes plenas de ondas nutrientes, ou, ainda, ectoplasmas borbulhantes, mas prestativamente alimentícios. Aos poucos, muito, muitíssimo aos poucos, fui me dando conta de que estava vivo e que, se meus sensores perceptivos não estavam danificados, encontrava-me em Pau Doce mesmo. Mas, por que o cenário de sonho? As quiméricas sensações? O éden nirvânico paradisíaco? Garçons angelicais... sopros calóricos... influxos alimentícios...? Por imperceptíveis gradações, fui me dando conta das respostas. Estava em Pau Doce, de fato, tão pau e tão doce como sempre. Estava em meu bar habitual – todos os bares paudocenses me são escandalosamente habituais – deitado sobre três mesas, voltando à vida. Pelo que depois me informaram, eu havia desconectado há uma semana, ou pouco mais, tendo feito, com uns íntimos amigos, dos quais não tenho o mínimo vestígio de lembrança, uma aposta deliciosa: aquele que conseguisse maior absorção hemoetílica por milímetro cúbico, ganharia o invejável prêmio de seis meses de gratuidade alcoólica em todos os estabelecimentos comercializadores do gênero da mais primeiríssima necessidade pedeense (de “pe” e “de”: Pau Doce). Que maior felicidade poderia ter um morador desta moralíssima praia? Que maior prêmio? Que maior ventura? Seis meses de maravilhosa e total prévia anistia pecuniária para consumo da seiva fundamental! A comissão organizadora do concurso queria, inicialmente, que a gratuidade fosse vitalícia, mas a própria cidadania manguacense, que inclui praticamente toda a população de Pau Doce, se opôs a essa eternização, prevendo um futuro sombrio para o comércio do divino néctar, o que redundaria em prejuízo dos próprios adoradores do deus Baco e deuses associados. A excepcional preocupação das lideranças paudocenses, de todos os setores: político, religioso, jurídico, educacional, esportivo e, até, das dessetorizadas, obrigou a Comidora (obviamente, COMIção julgaDORA) a lançar mão de todos os cuidados possíveis para preservar a lisura do embate, como, por exemplo, o de providenciar a aplicação de tecnologia de ponta e de sofisticados equipamentos. Para dar uma idéia do tipo de providência tomado, basta saber que a medição da quantidade do supremo elixir, por unidade de sangue, foi planejada para ser executada em intervalos de 30 minutos, em cada concorrente, pela equipe do Hemocentro “Sanguinário”, ou Seminário do Sangue, da Universidade Nacional da Transilvânia, em convênio com a Associação dos Investigados pela “Operação Vampiro”. Como o apatetado leitor pode ver, tudo em nível de primeiro mundo. Tudo em casa. Percebi, então, que o mar, que me parecera estranhamente imóvel e parado, como um quadro pendurado na parece, estava mesmo parado e imóvel e era, efetivamente, um quadro na parede do bar, pendurado bem à frente da minha cabeça. A expectativa pelos garçônicos anjos e forças espirituais alimentícias, indicava que uma semana em coma, mais alguns dias de disputado torneio, durante o qual só líquidos podiam ser ingeridos, haviam provocado uma incalculável “marica”, desesperadora sensação de insaciedade, irmã da larica. Quis saber o resultado do torneio. Meus amigos me parabenizaram pela derrota. Só entendi a razão do regozijo, quando recebi o convite para o enterro do vencedor.

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