terça-feira, 18 de janeiro de 2011

49 Pornoidéias

Em Pau Doce, um cidadão pode reclamar de tudo, menos de ausência de novas idéias. Como não fazer nada é a lei, sobram tempo e energia para elas. Nossa produção de propostas, usitadas e inusitadas, é, sem a mínima sombra de dúvida, a maior do globo por metro quadrado ou por neurônio cúbico. Todas as noites, na miríade de bares, botecos e bate-coxas que nos caracteriza, em cada um deles, com dois ou mais dulcipaulitanos reunidos em assembléia (bastam dois) as idéias vertem copiosamente, enxameiam, pululam. E durante o dia? Estará se perguntando o jumentício leitor. O dia, meu desestimulante amigo, como já me esfalfei de repetir em dezenas destas transcendentais Itinerâncias, o dia em Pau Doce foi feito única e exclusivamente para o descanso e à inação, acunados pelo sono. Durante o dia, enquanto o resto do mundo trabalha, Pau Doce dorme. Durante a noite, enquanto o mundo dorme, Pau Doce se diverte. Bom, após esta desagradável pausa, este interregno dispensável, provocado pela nulidade intelectiva do desagradável personagem acima citado, voltemos às idéias. Como a cada noite uma avalanche de idéias se abate sobre nós, e como a cada amanhecer somos condenados ao sono reparador e amnésico, a maioria das concebidas idéias são destinadas a uma curtíssima vida espermatozoidal de horas ou minutos. Umas poucas, pertinazes e perturbadoras, ganham vida própria e subsistem para além da noite natalícia. Recentemente, uma destas obstinadas tomou corpo e passou a ser discutida em subseqüentes noites. Essa idéia, segundo consta (ou conforme corre), nasceu de uma aposta. Estava um grupo de gestados por meretrizes, filomamando (filomamar é o ato de refletir, enquanto se sorve algum néctar divino) no respeitável estabelecimento – de nome um bocadinho longo e inusual para um bar, mas, acima de tudo, edificante e poético: “Não põe a mãe no meio que eu ponho no meio da mãe” (excelente verso alexandrino, na forma, e uma verdadeira lição de vida, no conteúdo) – quando surgiu, como que do nada, a proposta de uma aposta (como diz o famoso ditado “Na proposta duma aposta só não entra quem desgosta ou que a vida é uma mostra”. Famoso e sem nenhum sentido): ganharia quem propusesse o maior “chá-de-bico” pra Pau Doce (“chá-de-bico” é o popular clister ou lavagem intestinal). Choveram as propostas mais pornográficas que se possa imaginar: comemoração do dia do trabalho, obrigação de, uma vez por ano, despertar antes das três da tarde, criação do dia anual da fidelidade, tolerância ao esporte, descriminalização do futebol. Só absurdos, só proposições completamente inaceitáveis, sequer imagináveis em Pau Doce. Mas, a pior de todas, a mais abjeta, infâmia das infâmias e que, segundo as regras do jogo, foi a vencedora – que por imoral e repugnante aos princípios de cidadania, não deveria nem mesmo ser aqui citada, mas que mencionarei apenas para provar até aonde pode chegar a desfaçatez humana e para demonstrar minha incomensurável índole democrática – foi a instituição do “dia sem álcool” em Pau Doce (ou Sem Álcool no Pau). Se a proposta fosse minimamente viável ou pseudo-palidamente exequível, como, por exemplo, “um dia sem oxigênio”, ainda vá. Mas, sem álcool? É a inimagibilidade elevada à máxima potência atômica e metafísica. A primeira reação, quando Pau Doce acordou para viver a noite seguinte, foi a despirocação total, acrescida da cabal desvaginalização. Gritos lancinantes, ululos ululantes, ameaças de suicídio em massa, massas de suicídio em ameaça, conversões escandalosas a religiões inexistentes, flatulências orais involuntárias, voluntárias flatulências horais. Uma vez passado esse primeiro momento de viadice aguda compreensível, a borbulhante população, por via das dúvidas enchendo a cara (já que o seguro morreu de velho), tentava encontrar possíveis atenuâncias para a vomitativa proposta: “Dia sem álcool”:
1- referir-se-ia a aposta não ao dia de 24 horas, mas à metade deste, assim chamada –dia- já que durante ela ninguém está acordado, ainda que não sejam poucos os que dormem com álcool injetado na veia, substituindo o soro, os quais seriam, neste caso, muito prejudicados;
2- proibição de abastecimento de carros a álcool nos postos paudocenses; um dia por ano,
3- ao invés de “dia sem álcool” seria “dia cem álcool”: multiplicação do consumo individual diário por cem vezes;
4- “de acém-alcool”: churrasquinho de acém regado a canjebrina, foram algumas das excêntricas interpretações, constituindo, umas mais, outras mais ainda, naquilo que a sabedoria popular define como “dar uma de João-sem-braço”.
Mesmo com o sadio corrimento das interpretações alternativas pelos bares de Pau Doce, o pânico foi enorme, geral e irrestrito, ou quase, superlotando, em consequência, o Posto de Saúde local, mais os Postos das praias vizinhas: Maresias, Pauba, Toque-Toques, Santiago, Praia Preta, Praia do Cu-de-Ferro, Boiçuca e, até, o Hospital Regional de São Sebastião. O diagnóstico de todas as internações foi um só, único e solitário: “Sindrome de Abstinência Antecipada”, ou, como quer a Orgasmização Mundial de Saúde: “Pânico Apriorístico Cautelar”, com o fator desencadeante rubricado como: “Antecipação Prévia de Estado de Carência Absoluta”. Dada a repercussão, até internacional, da calamidade pública, a pedido, (solicitadamente imposto), das autoridades estaduais e federais, as três polícias intervieram com vigor (e algo mais) com o fim de identificar os criminosos e colocar uma pedra (enorme) sobre o doloroso drama. Pelo que se pode saber, passados 28 dias do sucesso, o presumível autor da proposta ainda não parou de correr, dando conta algumas versões de que já teria atingido o Alto-Xingu, enquanto outras, mais insistentes, afirmam que estaria levantando poeira na África Sub-sahariana. Deus o tenha!

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