segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

46 Traidor, o grande herói

Todo país, toda nação, todo feudo, todo estado, toda pátria, toda cidade tem o seu traidor. Um traidor, uma traição novelesca, uma patranha rocambolesca. Não há história sem uma (ou inúmeras) filhadaputice escandalosa. Se não há traição, não é história. Será lenda, saga, epopéia, ficção, tudo menos história. Joaquim Silvério dos Reis, Calabar, Judas, Sacripanta de Trás-os-Montes, Brutus e tantos e tantos outros maravilhosos traidores são os reis da história, são os protagonistas fundamentais, sem os quais a história seria de uma chatice insuportável. Os heróis sequer existiriam, ou, na melhor das hipóteses, não passariam de personagens de segunda classe, sem brilho nem força, anêmicos, embaçados, minúsculos. Impossível imaginar a história de Cristo sem Judas ou a Inconfidência sem Silvério. A história, essa linha do tempo permeada de intrigas, heroísmos e baixarias, pode ser contada a partir de várias vertentes distintas. Do ângulo dos generais vencedores, dos alcoviteiros profissionais, das amantes estratégicas, dos baba-ovos asquerosos, dos fantasmas estimulantes, dos reis covardes e das rainhas dominadoras. Mas, nenhum deles será tão entusiasmante, tão dramático e tão veraz como o ângulo dos traidores. Atirados à condição mais abjeta pelos narradores oficiais, eles não têm nada a perder, nem a esconder. São garantia de emoção e de delírio. Executantes das ações mais nefastas e perpetradores das atividades mais vis, sempre pela voz e pela pena do oficialismo, eles são os responsáveis pelo colorido e pelo picante tempero da história. A vida de Cristo, por exemplo. Não dá para comparar a trivialidade das Bodas de Caná, o exagero próprio dos pescadores na enxurrada de peixes no Lago de Cafarnaum, a cinemascôpica transfiguração no Monte Tabor, nada disso é comparável ao momento glorioso da traição de Judas: apimentado pela ganância dos 30 dinheiros, enriquecido pela negação durante a Última Ceia, espetacularizado pela estratégia do beijo de denúncia no Jardim das Oliveiras e hollywoodianamente encerrado com o gran-finale do suicídio por enforcamento. Sem Judas a vinda de Cristo teria sido em vão. Toda uma vida destinada à salvação do mundo, incluindo um nascimento inexplicável, milagres aos montes, pregações para platéias de Fla-Flu, parábolas para lá de parabólicas (como as antenas), frases lapidares... tudo, tudo teria sido um esforço jogado fora se não fosse por Judas. Ele foi mais importante, muito mais importante que Pedro, João, Mateus, os outros apóstolos, Maria Madalena, Lázaro, Marta. Os outros poderiam não ter existido. Judas não. Judas foi o único imprescindível. E como Jerusalém teve seu grande e maravilhoso traidor há mais de 1970 anos, Pau Doce também teve o seu. O ano é incerto e nebuloso, ainda que saibamos exatamente quando foi. Era Governador-Geral paudocense o títere português, emputado, emputado não, enviado por Lisboa para enviadar nossa querida praia, Dom Anal Fabeto Jejuno Filho, o Çábio, quando houve uma mega-invasão estrangeira por terra, mar e ar, da qual participaram índios sioux e apaches, piratas polinésios, missionários da Igreja Universal do Reino de Zeus, políticos do PT (Partido dos Travestis), marinheiros desgarrados da esquadra de Pedro Álvares Cabral e marujos desertores da frota do Capitão de Mar-e-Guerra Luiz Alves de Lima e Lixa, além de incontáveis Legiões, Tronos e Potestades celestes (os que vieram pelo ar) com espadas flamejantes e asas multicoloridas. A Dom Anal cabia o comando da resistência, ou seja, Anal tinha que salvar o Pau. E como todo bom comandante que se preze, na hora da onça beber água, ele passou o comando ao seu lugar-tenente General Anus Atrás da Costa, o Pleonasno e entrou de licença médica. Pleonasno, por sua vez, que por mais asnático que fosse, não era de todo burro, como tinha umas horas-extras atrasadas, requereu-as e passou o bastão para seu imediato, o Sargento-mor de origem nipônica Kon-Okumi Manejo, o Gueixo, que percebendo o tamanho da encrenca, e não tendo nem horas-extras, nem férias, nem médico subalterno pra lhe quebrar o galho, simplesmente pirulitou-se, ou, numa linguagem mais castrense, desertou. Estava a cidadania de Pau Doce totalmente à mercê dos invasores, quando, do meio da plebe, surgiu um iluminado que, segurando a espada na mão, uma espada glande, glande não, grande e vigorosa, impôs-se com bravura aos invasores, gritando enlouquecidamente: “Uuuuuuuhhhhh! Uuuuuuuhhhhh! Uuuuuuuhhhhh! Xô malvados invasores! Bofes horríveis! xô!” O nome do herói até hoje permanece oculto pelas brumas das imprecisões e pela falta de pesquisa séria sobre o assunto. O que se sabe, de verdade, é que no auge da resistência, quando o herói, injustamente anônimo e desconhecido, conhecido apenas por Heróides (nada a ver com Herodes, por favor!), estava dando tudo de si (como se vê, atitude muito comum entre a cúpula bélica de então) quando, num ato de tresloucado destemor, estando quase a ponto de conseguir a expulsão dos penetrantes, justamente nesse momento culminante, surgiu ele, como que do nada, ele, o maior, ele D. Dante, o Traíra. Paudocense de boa cepa, como depois se soube, (filho primogênito de P. Dante, o Esnobe, sobrinho querido de V. Dante, o Enxuto e protegido de seu outro tio, C. Dante, o Enfadonho, mas rompido com o irmão mais novo destes, Q. Dante, o Estático), passou desapercebido por entre as forças (forças, evidentemente, é uma força de expressão) de defesa que se esforçavam por defender Pau Doce da sanha invasora dos invasores e, sorrateiramente, conseguiu esgueirar-se em direção às hostes inimigas. Uma vez no meio delas (das hostes), D. Dante, dedando, identificou-se como traidor nato e de boa formação, solicitando (exigindo, segundo outros relatos) ser conduzido à presença dos comandantes. Recebido pelo alto-comissariado das tropas alienígenas, deu todo o serviço (o que deixou os comandantes muito extenuados, mas felizes), além de todas as informações necessárias ao destroçamento dos resistentes, a começar pelo assassinato do Heróides. Indagado pelos chefes chegantes se agia daquela forma (já que não fora cooptado, nem subornado, e sequer convencido a trair) por vingança ou ódio dos seus concidadãos ou de seus líderes, respondeu que, absolutamente, agia como agia por vocação e predisposição genética, não aceitando qualquer contrapartida, quer na forma de prêmio, de privilégio ou de sinecuras. Os invasores, seguindo os toques e orientações de D. Dante, trucidaram os heróicos defensores de Pau Doce, culminando com a sangrenta execução do Heróides. A partir desse dia, dessa memorável traição, que deu brilho e encanto à sua história, Pau Doce, deixou de ser a terra da seriedade e do trabalho, formada apenas por descendentes de insossos e toscos lusitanos para, por dedantíssima obra, tornar-se a maravilhosa amálgama da incrível e majestosa miscigenação que hoje é, celebrizando-se como a terra do ócio absoluto ou quimicamente puro. Viva nosso herói-do-avesso! Vida D. Dante, o divino traidor!

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