domingo, 14 de novembro de 2010

36 Esculpindo alimentos

Muitos dizem que cozinhar é uma arte. Conhecida no mundo fashion por cozinharte. Há os que afirmam que, mais do que cultura, a preparação de alimentos exige amor, dedicação e trabalho. Talvez, esta última razão explique o fato de eu sempre ter odiado a cozinha. Nojo é a palavra mais certa. Quando descobri que os alimentos não apareciam do nada, já prontos para serem consumidos, e que eram preparados em locais especiais, senti nojo. Antes de chegar a Pau Doce, isto era algo que sequer existia para mim. Era como se eles, os alimentos, estivessem prontos desde sempre. Só se materializavam na hora em que os via na minha frente. Na mansão em que morava quando criança com minhas babás (mamãe estava sempre viajando), não havia cozinha. Era o que eu achava. Se existia uma, eu nunca a vi, nem nunca nela entrei. Na mansão da adolescência, idem. E, quando já adulto, na terceira mansão, também a cozinha inexistia. Mamãe, mesmo ausente, sempre me proveu de tudo. E minhas babás, empregadas, mucamas e aias faziam a comida se materializar na minha frente, e pronto. Teus, também, muito contribuiu, com sua insondável divina grana, para minha virgindade culinária. Só depois de chegar a Pau Doce, muito depois, é que comecei a conhecer os segredos da cozinha. O primeiro prato que aprendi a fazer foi pão com manteiga. Apesar de toda a minha natural resistência, meus amigos acabaram, praticamente, por me obrigar a essa primeira aprendizagem vergonhosa: ou eu, dali por diante, aprendia a passar a manteiga no pão, ou passaria a comer pão com pão. Apesar da minha repulsa visceral – afinal, passar manteiga no pão não deixa de ser uma modalidade de trabalho, tão vergonhosa quanto qualquer outra – a constatação de que eu não mais iria ver a manteiga derreter no pão quente, falou mais alto. Durante um mês, com enorme força de vontade, procurei dedicar-me com afinco a essa aprendizagem. Não foi fácil. Noites e noites, acordei suado e ofegante, após terríveis pesadelos, nos quais eu morria afogado em rios de manteiga, ou era ridicularizado nas ruas de Pau Doce, como se eu, de fato, estivesse trabalhando. Afinal, aprendi a fazer este sofisticado prato de nossa culinária. Primeiro, abre-se o recipiente que contém a manteiga (lata, pacotinho ou embalagem plástica); depois, com muito cuidado (em se tratando de pão francês), com uma faca de lâmina serrilhada, abre-se uma fenda do lado direito do pão no sentido de seu comprimento, levando-a até o lado oposto transformando-o em duas metades iguais; a atenção do cozinheiro deve voltar-se nesse instante para a fonte de manteiga: aí, usando uma espátula, ou faca lisa, ou, não havendo outra forma, a mesma utilizada para abrir o pão, com cuidado para não penetrar com muita profundidade na pasta (que deve estar a temperatura ambiente, jamais resfriada) retirando dela, se possível com um movimento da direita para a esquerda, uma porção com cerca de 5 gramas; a última etapa deste saboroso prato é da maior importância para o resultado final: tomando-se na mão esquerda, a metade inferior do pão, deve-se espalhar a manteiga recém retirada de sua fonte, no sentido longitudinal, suavemente, com o mesmo utensílio que a esteja portando, se possível, obedecendo a mesma direção anterior, ou seja, da direita para a esquerda. As operações de retirada da porção de manteiga e a de sua colagem no pão devem ser repetidas quantas vezes se fizerem necessárias para completar a sobreposição de toda a área interna do receptáculo. Depois de terminada a manteigalização da primeira metade, todo o processo deve ser reproduzido, de maneira idêntica para a cúpula do pão. E aí, depois de todo esse trabalho, se ao cristão ainda sobrarem forças e apetite, ele poderá saborear essa sofisticada iguaria. Uma vez deflorado com carinho, quer dizer, uma vez decorado o caminho, tudo ficou mais fácil. Onde passa um boi, passa uma boiada. O meu segundo prato foi a adoçação do café. Durante toda a minha vida, eu seria capaz de jurar que café era uma bebida doce, como o licor. Jamais me passou pela cabeça que fosse necessário adoçá-lo. Quando descobri essa tragédia, resolvi não mais tomar rubiácea se estivesse sozinho, sem ninguém para açucará-la para mim. Porém, após o aprendizado da manteiga, acabei por sucumbir também no café. Daí por diante, não parei mais. Fui aprofundando minhas habilidades de gourmet. Por exemplo, aprendi a fazer cubos de gelo. Essa tarefa, totalmente nova para mim, de transformar água líquida em água sólida, foi revolucionária. Nunca imaginei que fosse possível fazer tal operação fora das linhas de montagens das fábricas de gelo. Produzir gelo na própria residência ou estabelecimento comercial do paisano, na sua geladeira ou freezer? Incrível. Confesso que ainda não dominei, totalmente a técnica de gelificação, mas, na maioria das vezes que tento, me saio bem. Que incríveis mistérios não contém a natureza! Só a maturidade nos permite desvendá-los. O amendoim, por exemplo. Descobri que o abençoado amendoim não é, em sua forma original, como sempre pensei que fosse, da forma que sempre me foi servido. Uma castanhazinha pequenina e amarelada, ou às vezes, quando já idosa, coberta por uma pele escura. Para meu espanto, descobri, recentemente, que ele, o amendoim, vem embalado de fábrica num invólucro estranho, como um casulo de palha seca, contendo lóculos que abrigam os grãos (amendoins são grãos, me disseram). Superei este outro desafio e já domino a complicada técnica de produzir o amendoim livre do seu invólucro. Com a chegada da comida congelada a Pau Doce, aprendi a fazer pizza, nugets e lazanha. Claro que jamais fiz qualquer desses pratos. Sempre há, na roda, alguém disposto a fazê-los. Mas, eu tenho alguma idéia de como se opera para produzí-los. Estou me preparando, agora, para o grande salto à frente. No ano que vem, quero estar em condições de começar a aprender a fazer um dos pratos mais deliciosos da culinária universal: o ovo frito! E com gema mole. Vulgo “zoiudo”. Claro que quero aprender a fazê-lo em seus mínimos detalhes e em toda a sua sofisticação. Mas, só teoricamente. O que, aliás, já é outro vergonhoso trabalho. Te cuida lobisomem!

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