sexta-feira, 27 de agosto de 2010

20 Au! Au! Au! Latidos no Pau

Finalmente consegui um casal de amigos fiéis. Fiéis no sentido de fiéis-fiéis. Fidelidade. Fidelissimidade. Não de fiéis sectários, fiéis de alguma fé, igreja, religião, culto. Mas, na verdade, pensando bem, (o que é difícil, mas não impossível) são fiéis também neste sentido, de alguma forma, quem sabe? Participam de um culto: à minha pessoa. Professam uma religião: na qual sou o messias. Pertencem a uma igreja: dirigida por mim. Têm uma enorme fé: em tudo o que eu digo. Enfim, são meus fiéis amigos, em todos os sentidos. Eu os adoro, não só porque eles me adoram, mas também, porque os domino, acima de tudo porque me pertencem, sobretudo porque os controlo e principalmente porque são meus e ninguém tem nada com isso. Não são meus escravos, como o afoito leitor pode estar pensando. Primeiro, porque isso de escravo está fora de moda e, além de fora de moda, dá cadeia; segundo, porque, de fato, não são meus escravos e, terceiro, são, apenas, de minha propriedade e pronto! Tenho documentos – manuscritos – (muito mal manuscritos, na verdade), provando o que digo. Ao menos o cara que me vendeu... De fato, ele não me vendeu. Tecnicamente, não foi uma operação de compra e venda. Ele os perdeu numa partidinha de pôquer. Fazer o quê? A figura, um desses perdedores por definição, vocação e DNA, já não tinha mais o que jogar. Havia perdido a barraca em que estava acampado, com tudo o que tinha dentro – porteira fechada – pro Parangolé. (O Parangolé, diga-se de passagem, é gente fina, finíssima, honestíssimo, incapaz de se aproveitar de um incauto ou de quem quer que seja). A 4X4, turbinada, com ar-condicionado até nos pneus, entregara, com documento assinado e tudo, ao Coroinha (na verdade, Coroinha do Capeta, o apelido completo). Quando chegou minha vez de pegar o bocó, já havia ido tudo, grana inclusive. Enquanto esperava meu turno (quando aparece um pato profissional como ele, fazemos um jogo paralelo para estabelecer a ordem de quem vai jogar com o infeliz. O ideal é não ser nem dos primeiros, que têm que jogar quando a partida ainda não esquentou, nem dos últimos, quando se corre o risco de só restar quirera, ou nem isso. Pra meu azar, fui dos últimos), fiz amizade com a dupla e, ao final, acabei aceitando o lote. Nunca fiquei sabendo o verdadeiro nome deles, pois na hora da troca de proprietários, o Bar Bicha parecia mais uma UTI do que um inferninho: um tomando whisky direto na veia, outro com um tubo de rum na traquéia. Tinha até nego aspirando gim por mangueirinha pelo nariz. Outras técnicas mais escatológicas, melhor nem lembrar. Três dias depois, quando acordei na minha cama, (sempre o mistério nunca desvendado de como consigo entrar em coma no bar e ressuscitar já no meu berço), a primeira coisa que senti – ainda não conseguia enxergar nada – foi a sensação de estar sendo observado. Uma hora e meia depois, quando abri os olhos, vi as duas caras peludas me olhando atentamente. Dei um grito pensando que estivesse no inferno, impressão corroborada pela fornalha dentro da minha cabeça. A sensação familiar de minhas mãos agarrando o lençol empapado de suor, me indicou que não estava nos quintos e nem aquilo era um horrendo pesadelo. Era, com certeza, uma horrenda realidade. Tentando me controlar, fui avaliando a situação. Minha cabeça estava, efetivamente, explodindo, o que, naquelas circunstâncias, era normal, a cama era, de fato, a minha, o lençol pingando, o meu. Mas, e aquelas caras peludamente diabólicas? Seriam lobisomens? Criei coragem, separei os dedos, deixei cair o lençol e, devagarinho, abri novamente os olhos. A esperança de ter sido uma alucinação gerada por destresse alcoólico, ou crise de abstinência, se desvaneceu. As caras continuavam lá, me encarando, os olhos me olhando. Se não eram lobisomens, pareciam cachorros (nunca soube bem qual a diferença). Cachorros? O que estariam fazendo dois cães ao lado da minha cama? Num relâmpago, me lembrei. O pôquer, o pato, o Bar Bicha, os cachorros. Assim começou essa fidelíssima amizade. Rebatizei-os, já que não sabia seus nomes. Para ele, um cocker esperto e malandro, escolhi Messalina, essa maravilhosa personagem, exemplo de mulher, deusa, paradigma do amor, minha heroína. Ela, uma sheepdog monumental de 150 quilos e um metro e oitenta de altura, tranqüila e doce, chamei de Napoleão, símbolo do humanismo, da construção da paz entre os povos e da integração humana. Messa e Napo me adoraram desde o primeiro olhar e da primeira cheirada. Aos poucos, mas rapidamente, se acostumaram aos meus hábitos e se habituaram aos meus costumes. Todos os dias, entre quatro e cinco da tarde, me acordam com suculentas lambidas na cara. Aprenderam a me carregar para casa e a me colocar na cama, quando a situação exige. Tiram, não sei como, a coleira de Napo e a põem em mim (acho que é Messa quem faz o trabalho) e imagino que assim conseguem me arrastar até o berço. Sempre acordo com aquele coleirão no pescoço e escoriações generalizadas. Nada grave. Nada que uma boa talagada não resolva. O mais lindo de tudo é a devolução da coleira. Chamo e Napo vem correndo, contentíssima. Antes, saltava em cima da cama, mas depois de quebrá-la varias vezes, aprendeu a esperar sentada. Para conseguir chegar a seu pescoço, (quase impossível de encontrar naquela floresta de pelos), faço o indizível esforço de me levantar e, na ponta dos pés, cumpro a missão. E nada disso seria possível sem a prestimosa colaboração de Messa que, sobre a cama, tira a coleira do meu pescoço, lambe-me a cara freneticamente, sabendo ser essa a única maneira de levantar-me do leito, segura e me alcança a coleira no momento do supremo esforço da recolocação. Não sei como poderia viver essa vida de monge sem a maravilhosa companhia dos dois. Adoro quando cantam a duas vozes; ela com um grave quase profundo e ele com trinados de prima-dona. Todo aquele que os vê atuando entende, na hora, a razão dos nomes. O único sofrimento é quando Napoleão entra no cio. Pobre Messalina, não consegue chegar no ponto G nem com todos os meus amigos do Bafo da Capivara tentando ajudar. Mas, também, com essa ajuda, nem eu.

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