sábado, 17 de julho de 2010

12 Amazônica, mas nem tanto

É sabido que muito poucas pessoas (dizem mesmos alguns especialistas que, de fato, nenhuma) tiveram a ventura de ver o Uirapuru. Mais impossível ainda é encontrar algum ser vivo que tenha capturado um. O Uirapuru é aquele pássaro maravilhoso que habita a Selva Amazônica, multicolorido e dono de um canto divino, que ao ser emitido, (e emitir é um verbo que, definitivamente, não está a altura desse cantar), transforma a floresta num templo de magia, a ponto de, sendo ela uma efervescência de sons, ser tomada, durante um eterno momento, pelo silêncio absoluto. Tudo pára, tudo se imobiliza no instante daquele canto definitivo. Apesar dos manuais de ciência natural registrarem, com luxo de detalhes, essa hipnose natural, que para muitos bordeja o sobrenatural, apesar de importantes sertanistas, antropólogos de renome, camponeses, mateiros e índios dela se ocuparem, continua forte a descrença na existência de pessoas que possam ter visto ou chegaram a ter o misterioso pássaro em seu poder. Mesmo assim, uma das mais populares festas de Pau Doce é o “Ritual de Libertação do Uirapuru”. Momento maior da celebração ecológica, reúne proeminentes ícones da luta preservacionista, ONGs das mais diversas feições, como a dos “Defensores dos Direitos das Abelhas Operárias”, a da “Luta Contra a Utilização do Minhocuçu para Fabricação de Hambúrgueres pelo Mac’Donalds”, a da “Abstinência Alcoólica para os Perus de Natal” e a do “Mutirão Nacional Permanente pelo Desagravo à Honra dos Tucanos” entre tantas outras. Além dos interessados especificamente no tema do evento, acorrem a Pau Doce turistas, populações vizinhas e o tipo mais importante em qualquer celebração: o “arroz-de-festa”. Estará, com certeza, você leitor, em sua compreensível ignorância, se perguntando: “Como Pau Doce consegue fazer uma cerimônia festiva de libertação de um pássaro que nunca foi preso?” Ah, consegue! Outras praias não conseguirão, outras cidades, estados, regiões e mesmo países não conseguirão, mas Pau Doce consegue. Consegue, em primeiro lugar, por sua vocação de sempre conceber o inconcebível e conseguir o inconseguivel. Aqui, e só aqui, sem jactância nenhuma, poderia haver um torneio de traçado de círculos quadrados, uma convenção internacional de homens grávidos, uma fábrica de gelo escaldante, o retorno emocionante daqueles que daqui nunca saíram, um festival de música silenciosa, um campeonato de natação entre galos garnisés e uma campanha de aleitamento por correspondência, (o aleitamento é por correspondência, não a campanha que seria feita no peito mesmo). Se todos esses eventos são possíveis aqui, (e já fazem parte do projeto de calendário de eventos da Comissão de Fomento Turístico), a libertação dos jamais cativos, ou sempre-livres, Uirapurus, seria uma baba. Seria não, é uma baba. Em segundo lugar, o paudocense é predestinado a ser uma mistura de “homus turisticus”, “homus festivus” e “homus diletantis”, o que o leva a transformar qualquer motivo, ou, principalmente, qualquer falta de motivo, em evento, festa ou celebração. Há também um aspecto pragmático na escolha do Uirapuru: como, com certeza, ninguém nunca o viu e sendo suas representações pictóricas (fotos não há) por demais díspares e fantasiosas, qualquer espécime pouco conhecido pode ser convincente no papel da misteriosa ave. Assim é que, meses antes da festa, um sem-número de pequenos animais, nem sempre emplumados, nem sempre bípedes e nem sempre ovíparos são, pacientemente, preparados, maquiados, alegorizados, fantasiados, disfarçados e até operados para condizerem com as idealizações populares do Uirapuru. Importantes cirurgiões plásticos especializados em estetização de bichos tropicais e afamados carnavalescos cariocas são contratados em função da efeméride. E, assim, galinhas-de-Angola, colibris, macucos, bigorrilhos, chupa-ovos, veadinhos mateiros (e urbanos), caninanas, tartarugas verdes, alguns vira-latas e até mulas vadias são travestidos em multicoloridos e canoros pássaros amazônicos. A grande dificuldade, e a conseqüente maior proeza dos técnicos responsáveis pela representação, ocorre no momento culminante: o da abertura das gaiolas. Ele se dá após os discursos de praxe, (na praça), da procissão dos engaiolados, (da igreja à praia), das danças rituais, (já na areia da praia), quando, a um sinal luminoso, milhares de jaulas são abertas em direção ao mar. Os Uirapurus pássaros (os que, de fato, são pássaros, não Uirapurus) voam sem problema, escurecendo o céu de cores semoventes e de pios, arrulhos, trinados, gritos, assobios, guinchos, gorjeios, estrídulos, enquanto os Uirapurus que são quadrúpedes, répteis, batráquios, cervídeos e outros mais complicados são lançados para dentro d’água, onde, por um tempo, desaparecem. Na medida em que o povo canta e dança, feliz a mais não poder, menos pela liberação ornitológica e mais pelo interessante teor alcoólico injetado na corrente sangüínea da cidadania, fazendo uma piramidal fogueira de gaiolas ardentes, jovens diligentemente treinados vão retirando de dentro d’água, a uma distância considerável da festa, os Uirapurus cachorros, serpentes, porquinhos-da-India, cágados, carneiros e veados que conseguiram sobreviver. O que seria do Uirapuru sem Pau Doce?

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