quarta-feira, 7 de julho de 2010

10 Assuma a sua ou suma!

Deitado naquela areia branca, sentindo a água tocar meus pés em seu contínuo vai-e-vem, com o sol crestando minha pele exposta ao céu, ouvindo pássaros, grilos e marulhos, tendo meus cabelos açoitados pelo vento leste, eu me perguntava: “Cacete, eu não podia ter enchido a cara deitado na minha cama?” Ergui-me com dificuldade, cambaleante e encharcado pela água do mar, pelo sereno da noite recém-finda e por não sei que outros líquidos inoportunos e involuntários, caminhei pela praia, afundando os pés na areia fofa, respirando fundo e sentindo-me mais reanimado. Fui em direção ao Bar Bicha, onde cheguei já com algum discernimento. Discernia que minha cabeça não era, como havia há pouco eu pensava, uma usina de dor lancinante ininterrupta, e sim uma bigorna de marretadas regulares, proporcionando-me, entre cada golpe, 10 segundos de maravilhoso alívio. Queria curar-me com um “fogo de encontro”, mas não conseguia lembrar-me com que diabo de bebida havia me embriagado na noite anterior. Decidido a tentar outra terapia, menos convencional, arrastei-me até a Farma Lícia e fui atendido pessoalmente pela proprietária (até porque não há empregados na farmácia) a farmacêutica Dona Lícia Berta. Aplicou-me um licor na veia que me fez sentir saudade da usina. Tonto, fechei os olhos. Em seguida, abri-os com alívio. Não havia dor, não havia tontura, não havia Dona Lícia e nem sua farmácia. Estava deitado em minha cama atentamente observado por Micoim, Geraldo Fla e Bigorrilho, meus mais fiéis padioleiros e parceiros de damas (nos dois sentidos). Dispensei-os, indicando a direção do bar. “Uma por minha conta!” E pude, então, curtir o prazer de ficar sozinho, sem os pentelhos e já recuperado da apoteose de cangebrina. Mais tranqüilo, recostei-me na cabeceira da cama, quando vi, sobre o criado-mudo, um telegrama. Arrancado, a fórceps, daquele nirvana, vi, naquele pedaço de mau agouro, a fatal realidade abatendo-se sobre mim. Algo de sério deveria ser. Pensei logo em minha mãe. Ou em alguma das minhas ex-mulheres. Muitas querem sempre saber onde estou, se finalmente morri, ou porque minha mãe atrasou o dinheiro da pensão. Não sei porque insistem em me encher o saco com essas questiúnculas menores. Sabem muito bem que a questão de grana é com mamãe e não comigo. Esse foi o acordo que fizemos (mamãe fez) com todas. Sem exceção. Peguei o telegrama meio com nojo. Abri-o, já que não havia ninguém para fazer isso por mim (arrependi-me de haver enxotado os chongas, por mais que não soubessem ler, ao menos poderiam segurar o asqueroso papel para mim). Li o nome do remetente. Ah, não! Teus me chamava! Por mais que o cara fosse meu chefe, por mais que a empresa precisasse de meu valioso e insubstituível trabalho, era muita sacanagem. Me deu vontade de ligar para ele: “Mas, meu Teus, eu acabei de chegar a Pau Doce! Mal fazem 7 meses que estou aqui e você já quer que eu volte?” Isso, pensei, deve ser coisa da minha mãe. Não, não, deve ser tramóia da turma de puxa-sacos da firma. Não podem ver ninguém sair de férias, curtindo uns dias na boa, que não sossegam enquanto não estragam o merecido descanso do infeliz. No caso, eu. Sempre eu. Rezavam, imploravam a Teus para me levar de volta ao trabalho. Se eles soubessem como o (com o perdão da má palavra) trabalho me faz mal, quanto o odeio, eles não fariam isso. Pensando melhor, acho que aí é que fariam. São todos uns canalhas. Mas, Teus é bom. Teus é compassivo. Teus é justo. Sabia que minha estada, em Pau Doce, era para estudar o comportamento humano (e, às vezes, os das formigas também) e que esse(s) estudo(s) redundará(ão) em crescimento de nossa (nossa não, sua) empresa. Rezava para que Teus, em sua infinita sabedoria, me deixasse completar o ano de férias. Afinal, faltavam menos do que cinco meses, que diabo? Resolvi ler de uma vez o telegrama e acabar logo com aquela agonia. Não adiantava chorar. Teus iria me chamar. Era a inevitável volta ao martírio. Mal pude entender as palavras de Teus no texto que dizia: “RETRORNE A SÃO PAULO VG URGÊNCIA URGENTÍSSIMA PT LICENÇA TRABALHO CONTINUA PT MAS VG PELO AMOR DE TEUS VG POR MISERICÓRDIA VG ASSUMA A SUA MÃE PT”.

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