quarta-feira, 20 de outubro de 2010

31 Teatro histórico

Quinhentos e tantos anos depois, Pau Doce vai realizar, pela primeira vez no Brasil, e se é no Brasil, será no mundo, a mais justa homenagem, mais do que justa, apertadíssima homenagem, jamais feita, ao cara pálida, ao alvíssimo e alvaríssimo ser humano (ser ou mano?) que por aqui chegou nas caravelhas (caras e velhas, na opinião de Cabral & Associados), desviados da rota, estabelecida em contrato com el rey D.Manuel, o Venturinha, por acidente de percurso. Mas, como assim? Perguntará, atônito, o estultíssimo leitor. A primeira homenagem a Cabral? O Brasil não está capilarmente devastado de tanto fazer homenagens, e até mulheragens, ao luso capitão? Não, querido e anencefálico leitor. Uma outra não tem nada a ver com a coisa. A Bahia não é Pau Doce e Brasília, também, não é Pau Doce. Só Pau Doce é Pau Doce. E Pau Doce jamais repetiria quem quer que fosse. Nossa cabralina homenagem será única, especialíssima, “primus inter pares”. E por que tanta exclusividade? Volverá a inquerir, em sua desneuronizada impotência, o ignaro leitor. A especialissimidade de nossa comemoração vem do fato de ser essa a única festa indígena a celebrar o descobridor. Indígena? Indígena! Total e absolutamente indígena. Branco e preto nessa gandaia não têm vez. Quer dizer, quase não têm vez, já que Pau Doce é a liberdade elevada à enésima potência do infinito. Branco e preto só fantasiados de índio. Ou seja, preto é índio, branco é índio e até índio é índio. Na verdade, índio é menos índio que o branco e o preto, já que a maquiagem e a viadagem em Pau Doce são artes sagradas. Em nossa festa, o que tem de índia autêntica paparicando crioulo vestido de pajé, não está escrito. E índio babando por brancona travestida de Iracema, então? Touro Deitado descendente de nigeriano? Lua Estrelada chegada num chucrute? De monte! De monte, é pouco. De cordilheira! Mas, nossa festa é um caso à parte. Não, é um caos à parte. Caos, porque ela é a maior zona. A maiorsona de todas as grandes festas. Tudo com muito respeito: comemoração religiosa, religião comemorativa, liturgias e litorgias, oratórios e orotários, amém! Conhecida, internacionalmente, como “Capando Cabral”, nossa comemoração dura 3 dias. 3 dias e 3 noites, é claro! No primeiro, dá-se a preparação do ritual, que no idioma oficial da festa – o garachupi, mistura insólita de guarani, chulês e tupi – leva o sonoro designativo de Itaporangamirim, que em português culto quer dizer “Lapidação do Pênis Diminuto” e em chulês puro seria “Tasca pedra no pinto anão”. No segundo dia, ocorre a cerimônia “Recuperação do Combalido”, (em chulês, “Refresco pro Pintelho”), ou, oficialmente “Puringoraraporingu”, fase de interregno e descanso entre a exuberância da abertura – abertura, no sentido menos fechado possível, aliás, escancaradíssimo – e a loucura do fechamento ou momento da fechadura (fechadura, não flexadura). Interregno durante o qual, todas as tribos presentes ao megaevento, quiçá até algumas ausentes, dão-se, doam-se, permitem-se, entregam-se aos atos mais libidinosos imagináveis, pornografia pura e desenfreada, como: palitar os dentes em público, comer hambúrguer com catchup, tomar cerveja morna, coçar frieira entre os dedos do pé e até, horror dos horrores, ultrapassar pelo acostamento. No derradeiro dia, assiste-se – a menos que se feche os olhos – ao espetáculo mais sangrento que se tem notícia, desde o tempo em que Nero, o Piedoso, praticava seu esporte predileto “observação da origem da genialidade imperial, a partir do contemplar das vísceras maternas”. É o rito final, em que se dá a degola cabal, também conhecida pelo grito de guerra “Degola o Cabral!” durante o qual, o que sobrou da lapidação do vetusto membro cabralino é extirpado sem dó, nem piedade, pelos piedosos, condoídos e também antropófagos selvícolas, comandados pelo legendário pajé “Estirpaopau”. O espetáculo teatral de encerramento deste maravilhoso tríduo é levado a cabo no magestático palco, o “palcuzão” de Pau Doce. Ocupam o cenário três troupes de atores: uma, à direita, com mais ou menos duzentos componentes, formada, exclusivamente, por índios é a “Comissão de Decepação”; outra, à esquerda do palco, é integrada pelas divindades, espíritos intermediantes, com perto de trinta participantes; a última, postada no centro, conhecida como “Tem cutruco no sufoco”, formada por eles, os próprios, os descobridores, composta por uns quinze membros, prontos a serem, literalmente, desmembrados. Como estratégia de defesa e despistamento, todos os quinze atores aparecem vestidos de Cabral, assim, o verdadeiro, que é apenas um deles, fica protegido pelos outros catorze. Bela estratégia! Os índios, que são índios, mas não são idiotas, esfolam os quinze, por via das dúvidas. É interessante notar que todos os quinze Cabrais ou Cabraus, são atores portugueses autênticos, e que ao terminar o espetáculo, todo ano, os que conseguem, voltam com o que sobrou para Portugal e os que sobram ficam por aqui com o que conseguem. É preciso, no entanto, repor o estoque anualmente. E a cada ano a fila de candidatos, a ter o cabrau decepado, aumenta. Vai entender esses portugas...

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